EVANGELIZAÇÃO DESTROI CULTURA INDÍGENA EM “NHEENGATU”.

Por Celso Sabadin.

“Nheengatu” é um idioma inventado. Seria uma espécie de simplificação do tupi-guarani, misturado com Português, que os jesuítas criaram para facilitar o trabalho de dominaç… quero dizer, de catequização dos índios, na época da invas… quero dizer, do descobrimento do Brasil. Em São Paulo, por exemplo, o idioma oficial era o Português, mas nas ruas se falava Nheengatu. Mais tarde, no século 18, quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil, o Nheengatu foi proibido. O interessante desta história toda é que agora, em pleno século 21, o Nheengatu ainda resiste.
Contar a história deste idioma não é a proposta do documentário “Nheengatu”, que estreia nos cinemas nesta quinta, 02/12. O filme prefere registrar a jornada do diretor português José Barahona e sua equipe ao longo do Rio Negro, na Amazônia – margeando Brasil, Colômbia e Venezuela – a procura de aldeias que ainda mantenham o Nheengatu minimamente vivo. Uma viagem que se mostra das mais fascinantes.

História, religião, colonização, escravidão, negociação, política, cultura, invasão… há um pouco de tudo no longa. Mas o que mais chama a atenção é o predatório processo de evangelização dos povos originários, destruídos em suas culturas mais ancestrais agora sufocadas pela palavra de um deus sem relação alguma com suas raízes. Dói na alma a imagem de um rapaz indígena entrevistado no calor do dia, em suas simples bermudas, e que à noite se traveste de um pastor engravatado gritando versículos num galpão transformado em templo. Há até uma bíblia traduzida para o Nheengatu.
Uma senhora indígena “entrega” para a câmera que está produzindo uma bebida alcoólica a base de mandioca, “porque agora é proibido beber”. Sua colega a repreende, dizendo que ela “falou demais”. Outros dizem que não dançam mais porque “não pode”. As heranças culturais da região são destruídas a olhos vistos. Ingenuidade? Talvez não. Sem saber que seus áudios estão sendo captados, alguns indígenas comentam que “eles” (referindo-se aos brancos da equipe de filmagem) ganharão muito dinheiro com as imagens. Há um outro que tenta “refazer o trato” com Barahona e acrescentar 100 litros de gasolina na negociação previamente acertada. Não consegue.

O filme mostra, sem retoques, que pouca coisa mudou da época em que os jesuítas vieram destruir a cultura originária, a partir de 1500, para a época em que os evangélicos vieram fazer exatamente a mesma coisa, na nossa contemporaneidade.

Fazendo ligação com esta língua misturada, o filme também usa uma linguagem fílmica mista, onde câmeras diferentes e filmagens feitas com celular pelos índios e pelo diretor se aproximam para construir este encontro.

O filme venceu os prêmios de Melhor Documentário no XXVI Festival Caminhos do Cinema Português (Portugal, 2020), Melhor Filme – 17º CineAmazônia, Melhor Diretor e Melhor Desenho de Som – 15º FestAruanda, Brazil, 2020 e Prêmio Etnomatograph – 18º Millenium Docs Against Gravity Film Festival, Polônia, 2021.

Uma verdadeira aula de Brasil.