“EXILADOS DO VULCÃO”: FUSÕES DE SONHOS, MEMÓRIAS E IMEMÓRIAS.

Por Cid Nader.

Uma dúvida que poderia pairar pelo tempo todo em Exilados do Vulcão, desde o primeiro take onde uma caixa com fotos é desenterrada por mãos femininas, está em saber se o que a motiva a mergulhar num mundo em que sonhos, memórias e imemórias vão alternando sem que se saiba onde se fundem – sem se saber mesmo se fundem, ou se mesmo sonhos, memórias e imemórias –, que é uma paixão, um homem, está em sobre se estaria morto ou teria simplesmente sumido fisicamente de sua vida: momento que se insinua de forma mais determinante dos caminhos para trazer a luz esclarecedora (que terá de ser pescada ou intuída, como é toda proposta do filme, aliás) através da imagem de ressonâncias magnéticas de um cérebro e um tumor na região do lobo temporal direito (ou de um lobo temporal já retirado – o que, fisicamente, afetaria de modo muito mais incisivo a questão da preservação plena da memória), e na visão por entre a fresta de uma porta de quarto de hospital. Parecendo justo alertar que a diretora Paula Gaitán não fez essa sua mais recente obra para esclarecer, para contar por vias comuns, mas que foi “cinematograficamente” generosa ao possibilitar a quem necessite de certezas, ou caminhos, tal momento.

 

E o que possibilitam os trechos, os planos, as sequências e cenas que avolumam e avolumam, parecendo quererem preencher os espaços vazios ou cumprirem a função de “sinapses fílmicas” – criando algum fluxo tenso – para que as ligações se completem? Possibilitam mesmo entender que a busca “dela”, pelas mãos de Paula, representarão campo ideal para o trânsito alegórico e concreto que buscas de tal monta embaralham. E quando digo alegóricos e concretos é porque realmente há uma preocupação, jamais ostensiva, jamais ostentada de “modo legendado”, em fazer com que a construção da narrativa se faça com o que seria de se intuir como os caminhos comuns nesse modelo de busca empreendido por uma mulher que quer resgatar seu amado de um campo onde talvez nem ele nem ela conseguirão mais o mesmo tempo de trânsito: e estão lá no filme o excesso das imagens, de músicas, de “falares” estrangeiros (ou neblinas, águas, campos quase etéreos), dessa busca feita pela intuição/desejo/anseio, sim, mas com dados concretos insinuando-se pelas brechas – porque há as fotos, há a caixa, há a visão dele, como se documentos palpáveis em que se pode ao menos tentar um amparo confiável.

 

Estupefação diante do mundo criado pelo setor das coisas diáfanas, que a jogam por caminhos, como numa trilha imaginária que compreende montanhas, rios, neblinas em um estágio de buscas onde se apresentarão pessoas e situações, histórias e suspeitas. Momentos de beleza rara e até ostensiva, constante e presente, como se fossem instantes apaziguadores e resguardadores para uma jornada optada que é de mergulho profundo, que pode machucar, mas necessária quando ela opta não querer ter a seu amado “somente” como “uma” memória, mas toda as possíveis: nossa memória é composta por amplidão de informações, de dados, e é justo percebê-la querendo fazer de uma delas, a que mais lhe toca, algo mais complexo e repleto.

 

A cena do reflexo nas costas, das estrelas de mentira geradas por uma luminária que sumirá, (como por vários momentos ocorrerá – pessoas estão e num movimento da câmera de volta já não mais, coisas, também) enquanto lá em baixo, numa Belo Horizonte que talvez seja o fato mais real dentro do campo dos sonhos – porque, repito, há a realidade palpável das fotos e de ressonâncias –, ou a do corpo na água, as das neblinas servindo com locais específicos e apropriados para servirem de campo de mesclas, são alguns exemplos de criações obtidas, de falsificações que o cinema exige, como qualquer outra arte visual, quando quer escapar de ser entendido somente como ferramenta reprodutora de ficção ou verdades, indo na direção sempre desejável de ser percebido como o “veículo” (feio o termo, mas é o que me ocorre nesse instante) propício para o delírio. O momento que se dá num quarto de revelação de fotos, com sua luz vermelha e tensão sexual explodindo sob a música de tocada mais pegada – onde a câmera, inclusive, cumpre o ir e vir ambiental que se repete por diversas vezes pelo filme, resultando sempre um estar e um não estar mais -, é dos mais belos vistos ultimamente. Questões e situações estéticas que situam o pensar cinema, por Paula Gaitán, como algo de pleno apego à construção e elaboração da imagem, para fazer-se ela o conduto/narrador da história.

P.S.: evidente que elaborar sobre um filme de tantas possibilidades – ia falar em complexidades, mas não é o caso: é mais, mesmo, diverso e cheio de veios a serem explorados – quanto é esse Exilados do Vulcão, em plena correria de um festival de cinema, tem de ser de resultado contido, insinuador do que deverá ser feito numa próxima oportunidade, com mais tempo e calma.

Texto originalmente publicado em www.cinequanon.art.br