FERRARA DISCUTE RELIGIÃO E VIOLÊNCIA EM “MARIA”

É, no mínimo, inusitado. O sempre polêmico e quase sempre sanguinolento diretor Abel Ferrara (“Invasores de Corpos”, “Olhos de Serpente”, “Vício Frenético”) surpreende ao realizar um filme de forte cunho dramático-religioso: “Maria”, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2005. Sim, o filme chega ao Brasil com quase dois anos de atraso, o que é bastante comum para a obra de um cineasta como Ferrara, avesso a concessões comerciais.
Usando e abusando de metalinguagem, “Maria” começa mostrando a crise existencial da atriz (fictícia) Marie Palesi (Julitte Binoche), que acaba de interpretar o papel de Maria Madalena num filme bíblico do diretor (também fictício) Tony Childress (Matthew Modine). Após vivenciar sonhos e premonições, Marie decide abandonar a carreira e sair em busca de seu verdadeiro “Eu” em Jerusalém.
Enquanto isso, o apresentador de televisão Ted Younger (Forest Whitaker) desenvolve em Nova York uma série de debates televisivos sobre a vida de Jesus Cristo. As vidas e as trajetórias de Marie e Ted vão se cruzar, como dizem as próprias escrituras, “por linhas tortas”, de maneira inesperada e até certo ponto fatalista. Tanto Marie como Ted são pessoas perturbadas, movidas pelo desespero, a procura de respostas num mundo violento que só propõe perguntas. E em cima destes dois fortíssimos personagens (otimamente interpretados), que jamais se encontram fisicamente, que Ferrara propõe seu jogo de referências.
A começar, por exemplo, pelos nomes. Além do óbvio Maria/Marie, Ted é o apelido de Theodore, que significa “presente de Deus”. E o diretor Tony tem como sobrenome Childress, que apenas por uma letra não é “Childless”, ou “aquele que não tem filhos”. Isso num filme que trabalha o tempo todo sobre as relações pai/filho, seja na gravidez e no parto da esposa de Ted (num dos momentos mais comoventes do filme), em chocantes cenas reais de guerra, ou até mesmo nas referências bíblicas a Deus e Jesus.
Maria é um trabalho belo e difícil que cria um clima obscuro e misterioso graças também à ótima direção de fotografia de Stefano Fallivene, praticamente um estreante nesta função na época da realização do filme, mas que já havia trabalhado anteriormente como operador de câmera de Martin Scorsese.
Co-produzido por Itália, França e EUA, “Maria” teve sua primeira exibição em setembro de 2005, no Festival de Veneza. Ou seja, é bem provável, sim, que o cineasta mau caráter Tony Childress seja mesmo uma dura crítica a Mel Gibson, que havia lançado o seu polêmico “A Paixão de Cristo” em fevereiro de 2004. Daria tempo!