FESTIVAL DE CURITIBA 2016: DOIS NOVOS LONGAS BRASILEIROS E DIFERENTES CONSTATAÇÕES.

Por Cid Nader.

Num domingo de três filmes vistos no Festival Olhar de Cinema, fugindo um tanto de minha proposta para comigo mesmo, que era a de ater-me aos clássicos (volto a eles com certeza), escrevo por enquanto sobre dois dos vistos. Ambos de cinema, com certeza, mas um em que raramente o fazer cinema se impondo demais, para soterrar a proposta; enquanto o outro, aproveita-e bem do “fazer cinema”, para entregar um belo trabalho, que se fala e a seu mote, mais plenamente e completo.

TALVEZ DESERTO TALVEZ UNIVERSO
Direção: Karen Akerman, Miguel Seabra Lopes
Duração: 98min.
País/Ano: Portugal/Brasil // 2015

Adentrar alguns espaços físicos específicos criados pela necessidade humana, com intuitos organizadores, de criar-se regramentos ditados pelo institucionalizado social – como prisões, sanatórios, locais psiquiátricos –, tendo como razão, por lentes e microfones, tal invasão, concretizar algum modo de registro que possa retirar os “encarcerados” de seus infernos para serem enxergados, talvez minimamente compreendidos, pelo grande do bolo social comportado e ajustado às regras que vive tranquilamente suas vidas dos lados de fora, é um desafio que cineastas vira e mexe topam enfrentar. Razões para tal, das mais diversas, intrometeram seres curiosos na busca, rendendo trabalhos muitas vezes marcantes e que demonstraram o cinema como boa ferramenta para tal.

Quem me conhece sabe o quanto elogio o uso dessa arte para que defesas de bandeiras sejam feitas, para que documentários denunciadores tragam ao mundo suas denúncias, mas principalmente fazendo dessa utilização algo que se proceda respeitando ferramentas, “alma”, manejos do cinema, e não somente como se fosse um veículo (o veículo à mão) qualquer de trânsito e difusão dos assuntos. Reforçado isso: e quando o que deveria ser contado/defendido/apregoado sucumbe como mote, essência, diante de um trabalho que acaba por, na contramão daquele modo de erro, fazer do criar cinema, do uso das técnicas, escolas referenciais, ferramentas, algo que beire muito mais ser lembrado como um certo exercício de estilo, algo como o que poderia ser pensado como exibicionismo estético: é raro, mas pode acontecer.

E é essa a impressão que inicia, permanece e fica mais forte diante de Talvez Deserto Talvez Universo, quando há o filme repleto do que parecem ser vícios de um momento do cinema, que se instituem fortemente em tela, aprisionando os “presos” retratados na montagem rigorosamente planejada, que usa planos rigorosamente pensados para tal modelo de conclusão. Mesmo em se notando que todo o processo de captação deve ter exigido demais (física e animicamente) de Miguel Seabra Lopes em suas incursões na Unidade de Internamento de Psiquiatria Forense (Lisboa,Portugal), que o trabalho lá dentro jamais poderia ser imaginado como algo tranquilo de ser concretizado (circunstâncias num local de regras rigorosas, que trata com pessoas bastante avessas ao “comum”, portanto poderiam ser pensadas de tratos e acordos incumpríveis com alguém de fora, que os invada), que tensões extraordinárias provavelmente se instalaram nos momentos de observação do que se tinha à mão, o tal do certo planejamento, imagino, jamais foi deixado de lado. E mais do que os dramas anormais, nos vemos mesmo diante de um modelo que finda por diminuir o impacto humano, na busca do impacto, repito, estético.

Isso dos planos corretíssimos, montados (e Karen é boa nisso, sua área de trânsito maior dentro do cinema: talvez, nesse caso, sua armadilha, pelo pré-concebimento, pela ideia já instalada) rígidos, técnicos demais, sepultam muito do que as verdades captadas poderiam oferecer como impacto: mas, já os próprios planos que registram tudo usado dentro da instituição tratam de iniciar com sua frieza calculista ta. Sepultamento. Nos vemos diante de um modelo de cinema (que inclusive já poderia ser dado como etapa vencida: aliás, qual a razão do PB?) sobrepondo-se, reduzindo os dramas e coisas: os do senhorzinho tenso e meio violento que cobra tudo (inclusive por moedas); os do homem de olhar mortalmente sorridente que ouve e reinterpreta a seu modo Pedro Abrunhosa; ou ainda os do negro enorme, que para além de seus desvios mentais ainda deixa perceber, involuntariamente, os resquícios que sobraram aos negros, aos cativados. Há a ideia, que poderia ser a melhor (olhar por alguns humanos); e há um resultado que executa outra (olhar-se a si mesmo – diretores – e aos seus trabalhos).

A CIDADE DO FUTURO
Direção: Cláudio Marques, Marília Hughes
Duração: 75min.
País/Ano: Brasil/2016


Cláudio Marques e Marília Hughes, neste seu segundo longa-metragem, parecem ter optado por acompanhar os jovens, fazendo deles os elementos vivos (os seres, personagens, almas) que representam em tela muito do que suas preocupações mundanas exercem em seus modos de enxergar a vida, nos seus jeitos de preocuparem-se. É certo que fazem isso executando cinema, o que por si só já lhes garantia alguns muitos pontos de vantagem sobre outros que manifestam suas preocupações em tela, mas sem o esmero e respeito com a arte como lhes é particular. Tanto certo quanto percebê-los nessas “preocupações mundanas” usando os jovens mesmo como os veículos de condução/preocupação está notar que, principalmente, seu olhar vendo tais preocupações transita fortemente pelo incômodo com o que é dos desajustes sociais (dos que impõem prejuízos diretos, aos de ações e atos políticos; os que inter=ferem diretamente no prato de comida, aos que causam ebulição diante do que o futuro permitirá).

Esse “fazer/compreender cinema” está todo ali disponibilizado em ao A Cidade do Futuro. Após assisti-lo, as primeiras percepções, o que resta logo após a saída da sessão não permite pensá-lo tão bom quanto o anterior, Depois da Chuva (malditas as manias de comparações que mantemos em algum lugar do cérebro como medida que salta à frente na consciência razoável, antes de tudo), quando algo de insistência nuns quadros muito elaborados parece querer deixar marcado na retina instantes específicos, mais ao que gostariam os diretores do que por livre assimilação do espectador: são quadros de forte concretização formalista, que se encerram, e principalmente nesses encerramentos, como um corte que determinaria, “marque/registre” (o da briga, o dos amores – duas sequências contíguas, à beira da natureza, com dois casais -, o da cama a três…). Mesmo com essas primeiras sensações incomodando e retirando um pouco do prumo, ficava evidente (durante) o tanto de bom que automaticamente o filme também já nos entregava: as imperfeições e inconclusões que Cláudio citou no palco antes da exibição (realmente não me apetece ver o próprio autor falando de sua obra antes de eu mesmo me definir sobre o que ela me entregou) acabam por parecer processo natural diante da opção de uma não história completa e fechada em si (há o recorte de vidas e instantes como guia principal), e da ação paralela que coloca a Serra do Ramalho e os atos dos governos ufanistas como um pano de fundo nada ao acaso.

Dormido em cima do filme (um dia ainda paro com essa mania de falar do que senti antes, já que só escrevo mesmo depois de “dormir” sobre as obras, depois deixá-las transitar por âmagos, por inconsciente e o que advém como uma “pós racionalidade”), e o que pareceu ação direcionadora arrefeceu (lembro das mesmas cenas com muito mais carinho, bem mais organicamente compositoras e justas dos/aos momentos da ordem narrativa imaginada), percebendo que o imaginado a ser destacado como o elemento principal em meio a alguns submotes é tão, bonito, atual e necessário, como é o filme, após “arrefecido na dormida sobre ele”. Cláudio e Marília falam de amores humanos, dos amores entre os humanos, extrapolam as “binariedades” (bem para além dos monoamores), indo ao poli, para relatar do que deveria ser o aceitado, já que de cada um tudo há de ser respeitado (desde que não infira agressão, males, poderes opressores).

Há na proposta e na realização diversas belezas que – algumas notadas e marcadas de imediato – resistem, crescem, redefinem suas formas, e tudo com aquele desejado anseio, dentro do que deveria ser sempre do cinema. Como o ser bem fotografado demais – mesmo nas cenas que pensava impositoras de “ordens a ser obedecidas”, algo dessa correção da foto influía -, oferece potência e caminhos à montagem, que permite (propositalmente ou não inconclusa – fato aventado no depoimento e no texto, já), por seu lado, e ludicamente, mesmo em meio a situações que poderiam ser só de tensão (algo que o filme jamais agarra como modo de aprisionamento das atenções – falar de situações drásticas, diversas, sem o “apelo” do contundente já denota boa compreensão de como se agir com a arte) a fluidez fácil que se nota, que dirige os todos os momentos por caminhos tranquilos. Como o ser bem atuado, num estilo naturalista (e que fique claro que atuações antinaturalistas me agradam, quando o são por desejo do diretor) que permite empatia fácil, compreensão tranquila de mentes que vivem vidas e ambientes (opções) que não são tão tranquilas num mundo tão questionador, observador e castrador.

Ou, ainda, na beleza buscada do som do coração de uma criança, ainda no ventre materno, num dos instantes mais emocionantes e propositores de esperanças a que vi/ouvi nas/das telas nos últimos tempos. E, talvez, sonhar e dormir sobre um filme que permita esse som de coração batendo suavemente na memória explique mais do que a toda a bela execução, e tudo mais, as intenções (absolutamente humanistas) contidas lá dentro.

Texto publicado orignalmente em www.cinequanon.art.br