“FLOR DO ASFALTO”, ANTECIPANDO O FILME NOIR.

Por Celso Sabadin.
 
As cenas iniciais de “Flor do Asfalto”, de 1929, remetem diretamente ao caleidoscópio urbano do vigoroso “Berlim – Sinfonia da Metrópole”, que Walter Ruttmann realizara dois anos antes. O estilo é perfeito para adjetivar visualmente a moderna e metropolitana Berlim do final dos anos 1920, lugar onde a bela e sofisticada Else (Betty Amann) tenta roubar um diamante numa joalheria, mas é flagrada pelo policial Albert (Gustav Fröhlich, o astro de “Metrópolis”). Ele tenta encaminhá-la à delegacia, mas a moça, sedutora e ardilosa, consegue dissuadi-lo, oferecendo-lhe, digamos, seus encantos.
 
Na manhã seguinte, Albert se corrói em culpa por falhado como policial. E pior: se apaixona perdidamente por Else, sem saber que ela é a protegida de um rico diplomata (Hans Adalbert Schlettow).
 
Fascinantes questões morais vêm à tona neste longa produzido no fertilíssimo período entre guerras do cinema alemão. À crise de consciência do policial se une a falta de caráter de sua amada que, por sua vez, tenta uma redenção através de um suposto amor verdadeiro. Ou pelo menos da possibilidade de amor verdadeiro. É especialmente tocante a cena em que Else implora para que Albert não desista dela, mesmo após ela ter lhe confessado que roubava por prazer, sem ter necessidade.
Por outro lado, o pai de Albert, representante de uma geração passada, demonstra uma retidão incorruptível, ao sequer hesitar em prender o próprio filho, à revelia da mãe, num desencadear de fatos que – finalmente – proporcionarão a Else sua tão sonhada redenção. São tempos difíceis. Tempos de uma modernidade onde tudo é questionado, incluindo valores que até há bem pouco tempo pareciam inabaláveis. Tempos de uma Alemanha que se reconstrói após a derrota na Grande Guerra, sem saber que muito em breve embarcaria numa tragédia ainda maior. Tempos confusos de uma moral dividida e de uma sociedade em reconstrução.
Repleta de generosos closes com os atores, e um charmosíssimo chiaro-escuro típico do Expressionismo Alemão, a deslumbrante fotografia de “Flor do Asfalto” é assinada por de Günther Rittau, que mais tarde fotografaria os clássicos “Metrópolis” e “O Anjo Azul”, entre dezenas de outros.
 
A direção é de Joe May, austríaco que apensar de não ter ficado tão famoso e midiático como seus contemporâneos Fritz Lang e Murnau, teve importância fundamental na construção do grande cinema alemão do período. Assim como vários talentos europeus, May também reconstruiu sua carreira de cineasta nos EUA, fugindo do nazismo.
Com direito a mulher fatal, personagens multifacetadas, ausência de maniqueísmo e fotografia de fortes contrastes, “Flor do Asfalto” pode ser considerado uma espécie de precursor do gênero Noir, que ganharia os EUA e o mundo anos depois.
 
Só fica um pouco perdida uma cena – muito boa, por sinal – ambientada em Paris, na qual um ousado assalto a banco utiliza os subterrâneos da rede de gás da cidade. Não sei dizer se é algum problema com a restauração (é comum que cenas e até filmes inteiros do período mudo estejam hoje irremediavelmente mutilados), ou alguma outra questão não resolvida na cópia de 90 minutos disponível no You Tube.