“FRANCISCO BRENNAND” E A CLAUSURA DE UM XANADU PARTiCULAR.

Francisco Brennand é tanto um filme sobre o artista quanto sobre a sua condição de enclausurado. Não à toa, a primeira cena o mostra dentro de seu ateliê falando sobre a janela que só há pouco tempo decidiu mandar abrir. Mas é uma janela gradeada e de vidro espesso, que não se abre e apenas deixa ver o exterior. A visão contrária, de fora para dentro, só é possível em condições normais de iluminação para quem colar o rosto no vidro – o que geralmente só fazem as crianças curiosas. Assim Brennand mantém-se recluso, opção assumida desde 1971, quando se internou na antiga olaria do pai e a transformou no seu Xanadu particular.

O local é ponto turístico das proximidades de Recife. Impressiona pela profusão de esculturas, templos, piscinas e painéis com inscrições, numa esotérica combinação de literatura, espiritualidade e artes plásticas. Brennand é um dos poucos artistas do Brasil a criar não apenas sua obra, mas um lugar específico para ela, que passa a ser parte dela. Enquanto admira e homenageia Gauguin, pintor viajante por excelência, Brennand preserva a fama de um quase eremita. Ele próprio descreve a Oficina Cerâmica como “uma cidadela sitiada”, protegida por muros e um exército de guardiões de barro.
Não é despropósito inserir esse doc sobre a cidadela de Brennand no campo conceitual de outros filmes pernambucanos, que tratam da paranoia e das fortificações dos bairros de classe média. Há um sentimento da região que também atua sobre as obsessões mitológicas do artista. O enclausuramento, porém, é somente uma face do seu comportamento.

Na outra face está a vaidade bonachona, que se expressa numa verbalização sedutora e no embevecimento com o próprio trabalho. Nota-se no filme de Mariana Brennand Fortes, sua sobrinha-neta, o empenho em divulgar sua produção pictórica, mais variada e menos conhecida que a obra em cerâmica. Com suas mulheres carnudas e tristes, em poses extremamente naturais, as pinturas e serigrafias de Brennand abrem pequenas frestas para sua vida pessoal. Bem pequenas, aliás, e isso é o máximo que o filme se permite nesse setor. Espaço maior têm as fantasias de morte do artista, frequentes em suas digressões e nos seus sonhos.

Mais que um perfil biográfico, Francisco Brennand é a observação de um belo animal em seu habitat. Os travellings precisos e a luz “queimada” de Walter Carvalho não destoam em nada do ritmo e da temperatura do personagem. Lá está ele passeando entre seus abutres roliços, totens fálicos, figuras híbridas de nádegas e torres. Ou analisando esculturas e telas como se as olhasse de fora, com olhos de visitante. Ou ainda lendo as citações que espalhou pelos pátios, com a satisfação de quem decifra enigmas.

A voz dele é sólida e aconchegante. Isso somado à narração de Hermila Guedes e à lindíssima trilha musical de Lucas Marcier cria um tecido sonoro muito cativante. Ao mesmo tempo, ao transferir os trechos do diário de Francisco para a terceira pessoa, Mariana cria um distanciamento curioso. Somos levados alternadamente para dentro e para fora da enunciação de Francisco, enquanto permanecemos sempre, junto com ele, nos limites de seu enclausuramento. A cena final, única concessão ao exterior, exibe um mural realizado no início dos anos 1960 e abre o quadro para a Rua das Flores, no Centro de Recife.

Dentro da oficina de Brennand existem outros espaços de isolamento ainda mais radical, que são os fornos. Neles as peças “envelhecem”, se transformam e fabricam surpresas para quando as portas se reabrirem. Enquanto via o filme, eu esperava que esse tema do fogo fosse explorado de alguma maneira. Não aconteceu, o que me ensinou mais uma vez que um filme não é o que se espera dele, mas o que ele quer ser. E Francisco Brennand é um documentário redondo e perfeito como quis ser.

Leia Carlos Alberto Mattos em www.carmattos.com