“GERALDINOS”, UM ALERTA CONTRA O EXTERMÍNIO DA VIDA POPULAR BRASILEIRA.

Por Celso Sabadin.

Quando eu era bem pequeno e meu avô me levava para ver desenhos de Tom & Jerry aos domingos pela manhã, no Cine Itapura, sempre parávamos um pouco para assistir a algumas jogadas do futebol de várzea que acontecia nos diversos campos de terra da região. Não por acaso, o local era conhecido como Várzea do Glicério. E eu ouvia dizer que, se o Brasil era bicampeão mundial de futebol (naquela época ainda não éramos tri, muito menos penta), muito disso se devia ao “celeiro de craques” que eram os times de várzea.

O tempo passou, a várzea acabou, o celeiro secou e hoje lutamos desesperadamente por uma vaga na próxima Copa. Tudo porque o Brasil vive um crescente processo de  gentrificação (palavra bonita e difícil que, no fundo, quer dizer “tira esse povo feio daí”) com o claro intuito de eliminar pessoas e no lugar delas colocar apenas consumidores. Isso aconteceu com os times de várzea, acontece fortemente no cinema (o que é o 3D senão um grande agente gentrificador?), acontece na sociedade como um todo e aconteceu também com o Maracanã. É justamente sobre este estádio mitológico da cultura brasileira que se debruça o documentário “Geraldinos”.

 

O filme começa mostrando um breve histórico e a importância do Estádio Mário Filho, muito mais conhecido como Maracanã. Logo ele fecha suas lentes sobre a chamada Geral, aquele pedaço muito especial de cimento e ferro, de pouco conforto e discutível visibilidade do campo de jogo, onde o ingresso era bem mais barato. Acima da Geral, numa representação simbólico-social-arquitetônica do sistema de castas brasileiro, quem podia pagar pela arquibancada atirava dejetos sobre quem estava no andar de baixo. Uma situação que vale mais que um curso inteiro de Sociologia. Pelo seu baixo custo e por sua posição estratégica que permitia aos seus frequentadores xingarem os técnicos com mais contundência, a Geral acabou sendo o repositório dos torcedores mais apaixonados, fanáticos e espontâneos, que passaram a ser chamados de “Geraldinos”. Como é facilmente imaginável, a tribo dos Geraldinos, por si só, já é um prato cheio para qualquer documentarista.

Em determinado momento do documentário, lembro que ele é escrito e dirigido por Pedro Asbeg, o mesmo do ótimo “Democracia em Preto e Branco”, e começo a estranhar a ausência de um tom mais político no filme. Meu estranhamento dura bem pouco: logo após situar o espectador no fascinante universo dos Geraldinos, o filme dá uma guinada e faz explodir sua denúncia político-social: os podres interesses econômicos que derrubaram a Geral a golpes de britadeira para em seu lugar instalar poltroninhas e camarotes com estética de shopping centers. Tudo fica rapidamente claro. Não é um filme sobre um Estádio. “Geraldinos” é o triste retrato do lado neoliberal do Brasil, aquele que não descansa e não descansará enquanto não alijar a população pobre de todo e qualquer espaço que porventura ela estiver ocupando, para em seu lugar instalar uma elite sedenta por consumo. Aquele que colocou um horrendo conjunto de viadutos e uma gigantesca igreja evangélica onde antes havia campos de futebol de várzea. Aquele que fechou centenas de cinemas de rua a preço acessíveis para instalar caríssimos e ineficientes sistema de projeção 3D para satisfazer os comedores de pipoca. Aquele que quer privatizar a saúde e a educação gratuitos.

Não acredite se alguém te disser que “Geraldinos” é um documentário sobre o Maracanã ou sobre o futebol. Não é. “Geraldinos” é um soco no estômago que mostra como é feita a “limpeza étnica” no Brasil, como vivemos sem quase perceber este holocausto de extermínio de pobres que diariamente coloca fogo em favelas, privatiza o que era público, gourmetiza botecos e padarias, transforma picolé em paleteria, asfalta várzeas e, como dizia Eduardo Dussek, azuleja e acarpeta o sertão. Tudo em nome de um consumismo cada vez mais ignorante e voraz.  

O filme estreou em 28 de abril.