Guerra dos Mundos

Ao final da sessão de imprensa de Guerra dos Mundos, um jornalista brincou: “Será que vai ter segunda parte?”. Outro crítico respondeu: “Esta é a segunda parte. A primeira foi Independence Day (1996)”. A brincadeira procede. Guerra dos Mundos, a superprodução de Steven Spielberg orçada em US$ 120 milhões, cumpre o que promete – uma avalanche de efeitos especiais de tirar o fôlego –, mas em vários momentos se assemelha a remendos de produções anteriores. É impossível, por exemplo, não lembrar de Independence Day quando Tom Cruise sai de sua casa, completamente desavisado, e dá de cara com seus vizinhos, atônitos, olhando para o céu. Só faltou o Will Smith na cena. Os carros parados no meio da rua, sem funcionar por causa da tempestade eletromagnética, também levam um fortíssimo sabor de O Dia em que a Terra Parou (1951). As naves se comunicam com toques sonoro-musicais, como em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977). Isso sem falar no asfalto pulando estilo Godzilla (1998) e nas grandes e óbvias semelhanças que Guerra dos Mundos guarda com Sinais (2002).
Essas “referências” e/ ou “homenagens” e/ ou “repetições” não chegam a ser problema para quem for ao cinema em busca de um entretenimento estilo “montanha-russa”. Os fãs de efeitos especiais e cenas espetaculares não sairão desapontados, mesmo por que o roteiro do estreante Josh Friedman e do experiente David Koepp (roteirista também de Homem-Aranha (2002), O Quarto do Pânico (2002), Missão Impossível (1996), Parque dos Dinossauros (1993) e outros) não se perde em preliminares e parte direto para a ação logo nos primeiros minutos.
Porém, perdeu-se a oportunidade de se fazer um filme um pouco mais sério, denso. Não precisava muito. Só um pouquinho de conteúdo já cairia bem, mas salta na tela o medo que os produtores tiveram de ousar, de criar um pouco além, provavelmente para não comprometer os resultados financeiros daquilo que se espera de um blockbuster de verão. Ainda na primeira parte do filme, quando Tom Cruise entra em sua casa, em pânico, coberto por um pó branco que remete imediatamente às cenas de 11 de setembro, Spielberg parece acenar com uma metáfora política. “Foram os terroristas?”, pergunta a filha. Mas a tal linha de raciocínio político não tem continuidade e se dilui na enxurrada de efeitos que se verá a seguir.
Em Guerra dos Mundos, Spielberg morde e assopra. Retrata a crueldade e o individualismo da América ao criar uma cena estilo Madrugada dos Mortos (2004), na qual a van da família é atacada de forma selvagem por uma horda enfurecida de bárbaros, que até o dia anterior eram apenas pacatos cidadãos americanos. A situação se resolve à bala. Uma crítica ao egocentrismo de seus compatriotas? Parece que não, pois na seqüência alguém informa em alto e bom som que não há mais a necessidade de doação de sangue, certamente graças à generosidade deste mesmo povo. Como se não bastasse, a câmera corrige um pouco para a direita e enquadra uma bandeira norte-americana.
Pior, porém, quando Spielberg consegue criar uma cena bela e antológica – a do filho querendo fugir do pai para se unir ao exército e ir à guerra –, mas acaba abrindo mão de uma gigantesca oportunidade de passar ao mundo uma mensagem pacifista (aqui não é possível dizer como nem por que para não entregar o final do filme). Onde andaria o Spielberg humanista de A Cor Púrpura (1985) e A Lista de Schindler (1993)?
Num filme sobre invasões alienígenas não se exige demais do roteiro, mas algumas dúvidas incomodam. Por exemplo: como Tom Cruise sabia exatamente o momento do segundo ataque? Fica claro que ele tira seus filhos de casa dizendo que eles têm apenas 60 segundos e muito mais claro ainda quando ele insiste para seu amigo entrar no carro também, caso contrário morrerá imediatamente. Um pouco antes, durante o primeiro ataque, ele coloca as mãos sobre o capô de um carro abandonado e parece sentir alguma vibração, como se estivesse calculando algo… E nada disso tem continuidade. Como ele consegue fugir de Nova York, dirigindo em grande velocidade, se as ruas e estradas estão entupidas com carros que não funcionam? Falando em funcionar, se os automóveis, telefones, equipamentos em geral e até relógios pararam, o que explica aquele personagem operando sua câmera de vídeo em meio ao pânico? As câmeras estariam imunes à pane total?
Estas eventuais falhas de lógica são, por outro lado, compensadas pela sempre inovadora direção de Spielberg. Na primeira cena em que a família foge pela estrada, dentro de uma van, o diretor-malabarista faz um sensacional plano seqüência que dá um ou dois giros de 360 graus em torno do veículo, sem corte aparente e sem perder o foco dos personagens em fuga, enquadrando-os de fora para dentro do carro, enquanto Dakota Fanning tem um ataque de claustrofobia. Talvez isso até ajude o espectador a não prestar atenção que – pela lógica – aquela fuga seria impossível numa estrada abarrotada por carros parados. A garota Dakota, por sinal, é uma das boas coisas do filme e novamente rouba a cena com seus olhos enormes e expressão apavorada, como já havia feito em O Gato (2003), O Amigo Oculto (2005) e Uma Lição de Amor (2001). Há outros bons momentos, como o personagem de Tom Cruise sendo obrigado a perder a inocência e partir para o assassinato em sua obstinada luta pela sobrevivência em meio ao caos generalizado.
De resto, Guerra dos Mundos – outra vez – exorciza os fantasmas familiares vividos pelo próprio Spielberg, quando criança e adolescente. É a mesma fórmula de sempre: homem comum – e conseqüentemente de fácil identificação junto à platéia – busca dentro de si uma resistência descomunal, que nem ele próprio sabia existir, para superar obstáculos impensáveis, resgatar valores perdidos e, talvez, reunificar a família dilacerada. Tudo sob a trilha sonora de John Williams, óbvia e redundante como quase todos os trabalhos deste compositor.
Um toque final: se alguém reclamar que o desfecho do filme é chocho, talvez esta não-espetacularização do grand finale seja um dos únicos pontos em comum que Guerra dos Mundos tenha com o filme original de 1953.