“HÉRCULES 56″ REVÊ A LUTA ARMADA COM SENSO CRÍTICO

É como se fosse o filme “O que é isso, Companheiro?”. Só que de verdade. Assim pode ser – simploriamente – definido o documentário “Hércules 56”, estréia na direção de longas de Silvio Da-Rin, conhecido curta metragista e especialista em som do cinema brasileiro.
O filme documenta os fatos que envolveram o seqüestro do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. A concepção da idéia, a luta armada, a ação propriamente dita, a troca do diplomata por presos políticos, e até a chegada destes mesmos presos ao exílio são assuntos levantados de forma criteriosa e minuciosa pelas pessoas que melhor podem falar sobre o tema: os próprios participantes.
“Os protagonistas deste filme – diz Da-Rin – são os quinze presos levados ao México no avião Hércules da FAB, prefixo 56. Todos os nove sobreviventes foram entrevistados individualmente; os seis já falecidos comparecem através de materiais de arquivo. Para contemplar o seqüestro propriamente dito, promovi a reunião de alguns participantes da operação. Procurei Franklin Martins, Claudio Torres e Daniel Aarão Reis, os três membros da Direção da Dissidência da Guanabara (DI-GB), organização que idealizou o rapto e assumiu, na ocasião, a sigla MR-8. Os dois primeiros participaram da operação de captura do embaixador”, explica.
Uma terceira linha narrativa é constituída por extenso material audiovisual de época, em grande parte inédito no Brasil, pesquisado nos Estados Unidos, Cuba, França e México. As imagens da chegada dos presos ao México foram obtidas em agências noticiosas norte-americanas, e nunca haviam sido reunidas e editadas numa uma única seqüência, como se vê no filme. Cenas de alguns personagens falecidos vieram de um filme anônimo de denúncia de torturas, que havia sido conservado por José Luiz Del Roio, em Milão, no Archivo Storico del Movimento Operaio Brasiliano. As vozes estavam dubladas em italiano, mas as gravações originais em português foram localizadas nos arquivos do Instituto Cubano de Artes y Industria Cinematográfica – ICAIC, em Havana. O ICAIC também contribuiu com imagens de Cuba, entre elas as do desembarque dos brasileiros em Havana e a recepção por Fidel Castro. Outros personagens já desaparecidos apareciam em uma filmagem inédita feita em Roma por Hamilton dos Santos, enquanto a apresentação de cada um dos personagens foi visualmente unificada graças à série de fotos feitas pela polícia mexicana, logo após o desembarque dos brasileiros, conservadas no Archivo General de la Nacion, na Cidade do México. A Cinemateca da UNAM também colaborou, abrindo seu arquivo fílmico. Já no Brasil, e equipe de “Hércules 56” contou com o apoio do Arquivo Nacional, da Cinemateca do MAM-RJ, de José Carlos Avellar, dos arquivos públicos dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, da Iconographia, da Biblioteca Nacional, de personagens como José Dirceu e Mario Zanconato e, finalmente, de familiares de personagens já falecidos, como Rolando Frati e Onofre Pinto. Haja fôlego!
Desta forma, o cineasta montou um painel testemunhal que conta com, no mínimo, dois grandes fatores positivos para o filme: credibilidade e distanciamento crítico. Nada como conseguir documentar as vozes, olhares e expressões de quem realmente viveu as situações estampadas na tela. E também nada como analisar os fatos com a consciência do tempo passado. “Hércules 56” não faz a apologia juvenil dos ideais revolucionários, tampouco perde tempo chovendo no molhado dos desmandos autoritários da época. Centradamente, ele recorda a ação, ao mesmo tempo em que se questiona e se auto-critica à luz das quase quatro décadas que nos separam do seqüestro do embaixador.
“Sempre me incomodou a representação dos revolucionários dos anos 60 nos filmes de ficção feitos até então, com raras e honrosas exceções, daí meu interesse em realizar este documentário” conta Da-Rin, ele próprio um antigo militante da Vanguarda Armada Revolucionária – VAR Palmares – e ex-preso político. Captado em vídeo digital e transferido para película 35mm a um custo total de 760 mil reais, “Hércules 56” vem se juntar à atual leva de filmes que
revisitam os anos de chumbo do Brasil, como “Batismo de Sangue”, “O Ano que Meus Pais Saíram de Férias”, “Cabra Cega”, “Quase Dois Irmãos” e vários outros. Muita coisa? De forma alguma. Contar cinematograficamente para as novas gerações o que representou a ditadura militar em nosso país nunca é demais. Afinal, se até os dias de hoje um simples porteiro fardado se sente no direito da truculência, isso só acontece porque – de certa forma – todo aquele chumbo ainda não foi satisfatoriamente derretido.