“HISTÓRIAS CRUZADAS” E OS VÁRIOS TIPOS DE PRECONCEITOS.

As grandes mudanças sociais, em nossos tempos, parecem sempre impulsionadas por alguém que um dia perguntou: ‘Por quê?’. E, nos conturbados anos 1960, nos EUA, havia muitos motivos para tal pergunta.

Não era muito simples, ou cômodo, ou até saudável, ser negro, principalmente nos estados do Sul do país, ainda então extremamente segregacionistas. As empregadas, sempre senhoras negras, que tinham dedicado toda uma vida a cuidar da casa e das crianças de abastadas famílias brancas (e tentando manter seus próprios lares em ordem, ao mesmo tempo), tornando-se as verdadeiras mães das crianças que criavam enquanto as patroas dedicavam seu tempo a chás, tardes de bridge, ou ‘causas sociais’ (como o projeto de saneamento público que incentivava as famílias a construírem em suas casas sanitários específicos, para uso dos empregados negros – ‘afinal, eles tem doenças diferentes das nossas’ -, eram figuras fundamentais na trama social das comunidades e, mesmo assim, eram tratadas como mobília funcional. Mesmo quando consideradas ‘quase da família’, bastava as crianças crescerem e se tornarem também patrões, para que elas mudassem de status, de mãe postiça a móveis e utensílios.

Em alguns casos, eram até delegadas de mãe para filha em testamento!
Mas, em alguns casos, a história tendia a ser diferente. Ou quase. A jovem Skeeter (Emma Stone), uma daquelas figuras inconformadas com o status quo da sua comunidade, com pretensões a se tornar jornalista (e ela própria uma excluída social, por tentar ter um emprego e ser diferente – e só consegue escrever a colunas de dicas domésticas do jornal local), resolve entender a fundo as razões desta estratificação social, e parte para colher histórias destas empregadas e transformá-las num livro, dando voz a estas mulheres. O que se mostrará uma questão das mais delicadas, na medida em que estas mulheres, aterrorizadas de perder seus empregos, não tinham a menor vontade de colaborar na elaboração do texto.

Até que Skeeter consegue convencer Aibileen (Viola Davis), empregada de longa data de uma de suas amigas de infância, Elizabeth (Ahna O’Reilly), a conversarem, e Aibileen começa a contar-lhe suas histórias, sua vida e seus infortúnios. Reticente a princípio, com o tempo Aibileen revela a Skeeter um rico material, narrado em prosa fluente e emocionada.

A seguir, conseguem o apoio de Minny (Octavia Spencer, espetacular), a ex-empregada de pavio curto da arquivilã do filme, Hilly (Bryce Dallas Howard, subestimada em grande performance), que se desentende com a patroa, vinga-se (momento antológico do filme – não perca a reação da mãe de Hilly, Missus Walters, em atuação muito divertida de Sissy Spacek), é demitida e vai procurar emprego na casa de Celia Foote (Jessica Chastain, atuando muito bem contra seu tipo), outra pária na comunidade, pois veio de fora, de origem humilde, e se casou com um dos bons partidos locais.
Skeeter, Aibileen e Minny vão, aos poucos recolhendo histórias e casos (paulatinamente, com o apoio de outras empregadas locais), e tudo isto se transforma num livro, editado como obra de autor anônimo, mas que serve como uma carapuça sob medida para os habitantes locais.

Neste meio tempo, Skeeter ainda tem que lidar com seu próprio telhado de vidro, quando sua mãe, Charlotte (Allison Janney), desafiada perante outras damas da sociedade, é obrigada a expulsar de casa Constantine (a grande Cicely Tyson), que fora a babá de Skeeter durante toda a vida.
“Histórias Cruzadas” pode parecer mais um daqueles dramas edificantes, orquestrados milimetricamente para envolver a plateia e dela arrancar lágrimas e suspiros nos momentos adequados, mas é um filme que, principalmente para o público norte-americano médio, ainda é importante de ser visto, analisado e discutido. Afinal, os negros de ontem são os imigrantes de hoje, principalmente os latinos, que ainda são tratados como mão de obra não pensante.

E, na pior das hipóteses, para o público brasileiro, é uma grande chance de ver um filme recheado de grandes atuações, num elenco 99% feminino, e com uma temática muito relevante. Não perca!