INDIELISBOA, PLURALIDADE E DIVERSIDADE.

Por João Moris, de Lisboa, especial para o Planeta Tela

Terminou no último dia 7 de maio a 20ª edição do Festival IndieLisboa, que segue comprometido com a exibição de filmes alternativos fora do circuito regular dos grandes festivais de cinema. Com uma curadoria afiada e uma programação enxuta, sem nomes badalados do cinema comercial, o IndieLisboa se firma no cenário cinematográfico internacional como uma oportunidade de descobrir filmes de talentos emergentes e autorais.

Este ano, o IndieLisboa contou com 315 filmes entre curtas e longas metragens, distribuídos em 11 seções e exibidos em 4 grandes cinemas da cidade, além de uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa de um dos mais interessantes cineastas vivos, o realizador checo Jan Švankmajer (90 anos), mestre do cinema surrealista de animação que continua em plena atividade.

Nem todos os filmes exibidos no IndieLisboa têm uma proposta de linguagem ousada ou inovadora, mas garimpar obras de diretores desconhecidos ou novatos de vários países pode ser uma experiência altamente gratificante para espectadores ávidos por explorar novas narrativas e possibilidades estéticas.

A  destacar, também, a quantidade cada vez maior de mulheres por trás das câmeras em festivais de todo o mundo, sinal que a reivindicação global por um cinema mais equitativo e representativo está avançando. No IndieLisboa deste ano, quase a metade dos filmes exibidos é dirigida por mulheres.

Abaixo, as resenhas de alguns filmes que vi no IndieLisboa 2023.

 

É Noite na América (Brasil/Itália/França – diretora: Ana Vaz)

Um dos poucos filmes brasileiros do IndieLisboa deste ano, este surpreendente documentário da diretora e artista plástica brasiliense, Ana Vaz, parte de uma premissa inusitada: será que os animais estão invadindo as nossas cidades ou apenas reclamando o seu habitat natural? Com imagens em tons azulados e quase surreais de uma Brasília cada vez mais distópica, a câmera sagaz da diretora fixa no olhar dos animais da região do cerrado (coruja, lobo guará, tatu canastra, veado mateiro, macaco prego etc) onde a capital federal foi construída. Os animas antagonicamente encaram nós, os espectadores, que assistimos ao filme. Quem olha quem? Um olhar incômodo, inquisitivo, acusatório. Um filme de inversões que explora a identidade urbana e formas de sair de nós para olhar o outro que, invisível na penumbra, marca sua presença. Filme disponível na plataforma MUBI.

noite na america  Cena de É Noite na América (Foto: Divulgação)

 

Saint Omer (França – diretora: Alice Diop)

Este denso drama da diretora francesa de origem senegalesa, Alice Diop, conta a história de Rama, uma professora de literatura e escritora que viaja até a cidade de Saint-Omer, no norte da França, para acompanhar o julgamento de uma estudante imigrante senegalesa acusada de assassinar a filha de 15 meses e abandoná-la numa praia. Com um olhar humanista sobre o caso (verídico) e com um rigor estético e enquadramentos impressionantes que ajudam os espectadores a aprofundar as camadas sutis dos motivos que levaram a estudante a cometer o crime, por trás de cada palavra e de cada olhar, de cada respiração e de cada lágrima das mulheres no tribunal, Alice Diop revela os monstros ocultos do passado colonial francês. O filme estreou no Festival de Veneza de 2022, onde ganhou o prêmio do júri, e já foi premiado em vários festivais pelo mundo afora, inclusive no IndieLisboa.

saint omer Cena do filme Saint Omer (Foto: Divulgação)

 

Here (Bélgica – diretor: Bas Devos)

Este pequeno grande filme belga conta a história de Stefan, um trabalhador romeno da construção civil de trinta e poucos anos vivendo em Bruxelas que se prepara para tirar quatro semanas de férias no seu país natal. Com o cansaço de noites sem dormir e levando uma vida de imigrante solitária e apática, Stefan acaba cruzando casualmente numa mata da cidade com Shuxiu, uma jovem chinesa que trabalha no restaurante da tia enquanto termina o doutorado focado no ecossistema do musgo. Há alguma perspectiva der relacionamento para um encontro tão improvável? O jovem diretor belga Bas Devos, que desponta como um grande nome do cinema europeu atual, constrói uma fábula romântica sem os elementos narrativos típicos do gênero, o que nos instiga a olhar para as pequenas coisas do presente num mundo cada vez mais disperso e líquido.

here  Cena do filme Here (Foto: Divulgação)

 

Sick of Myself (Noruega/Suécia/Dinamarca/França – diretor: Kristoffer Borgli)

Esta comédia escandinava é uma sátira mordaz aos tempos neoliberais em que vivemos e suas consequências sobre as relações humanas. Signe é uma jovem carente com uma necessidade quase patológica de atrair atenção e simpatia. E quanto mais seu namorado, o nada modesto e presunçoso Thomas, vai ganhando fama como artista plástico, mais os planos de Signe para atrair atenção e competir com ele se tornam mirabolantes. À maneira do diretor sueco Ruben Östlund, o filme disseca a cultura narcísica da fama artificial e efêmera das relações sociais. Pena que a proposta inicial tão instigante e divertida do filme se perca num final tão convencional. Sick of Myself estreou na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2022 e, desde então, já percorreu vários festivais no mundo.

sick  Cena do filme Sick of Myself (Foto: Divulgação)

 

Amiko (Japão – diretor: Yusuke Morii)  

Conheça Amiko, uma garotinha de 11 anos de idade que mora com a família – pai, mãe grávida de um novo bebê e o irmão mais velho – num subúrbio de Hiroshima. Amiko é uma garota vivaz, curiosa, que vive num mundo todo próprio e, por isso mesmo, é um tanto excêntrica e solitária. Na escola, sofre bullying dos colegas, os professores parecem ignorá-la e, em casa, apesar da aparente felicidade que a rodeia, ninguém dá muita atenção a ela. Até que um dia uma tragédia se abate sobre a família e, alienada do mundo à sua volta, Amiko se torna cada vez mais inconveniente, isolada e incompreendida. Um filme contundente sobre invisibilidade, solidão infantil e distanciamento familiar. Estreia promissora do jovem diretor japonês Yusuke Morii.

 

amiko  Cena do filme japonês Amiko (Foto: Divulgação)

 

Remember to Blink (Lituânia – diretora: Austeja Urbaite)

Duas crianças lituanas são adotadas por um casal francês, Jacqueline e Leon, mas devido à necessidade de superar as dificuldades iniciais de comunicação e facilitar a adaptação, o casal contrata Gabriele, uma estudante lituana que vai morar com a família para ajudar a cuidar das crianças. Mas, as questões culturais e humanas se interpõem entre Jacqueline e Gabriele e uma disputa pela atenção e preferência das crianças passa a escalar entre ambas, sendo Jacqueline a figura de autoridade e Gabriele a presença amiga de cumplicidade. O conflito atinge níveis insuportáveis e perigosos. Um olhar angustiante sobre as carências e fragilidades humanas sob a perspectiva da mulher e a partir de choques culturais em uma Europa unida, mas desigual e cada vez mais multifacetada. Remember to Blink é uma produção exclusivamente lituana, o que é uma raridade.

remember  Cena de Remember to Blink (Foto: Divulgação)

 

Safe Place (Croácia – diretor: Juraj Lerotić)

Um retrato duro e cru de um período tumultuado de 24 horas que desestabiliza a vida de uma pequena família na Croácia. Conta a história de Damir, um homem com uma saúde mental debilitada pela depressão, que tenta cometer suicídio. O irmão e a mãe buscam desesperadamente segurar Damir à vida, mas os protocolos sistêmicos em que o paciente se encontra, estéreis, impessoais e desprovidos de empatia, enfatizam a falta de espaços realmente seguros para Damir e sua família.  O diretor croata Juraj Lerotić, em seu primeiro longa-metragem, entrega um filme impactante e verdadeiro baseado em uma história autobiográfica. Safe Place foi o grande vencedor do IndieLisboa de 2023.

   safe Cena do filme croata Safe Place (Foto: Divulgação)

 

Le Barrage (Sudão/França/Líbano/Alemanha/Sérvia – diretor:  Ali Cherri)

O Sudão é um país da África setentrional assolado por conflitos internos e foi governado durante 30 anos por um ditador militar (Omar al-Bashir), que caiu em 2019. As ramificações políticas dessa ditadura são sentidas até hoje e o país vive um clima constante de instabilidade e violência. Em seu primeiro filme de longa- metragem, o aclamado artista plástico libanês Ali Cherri constrói uma fábula sobre a jornada de Maher, um sudanês exilado que trabalha numa fábrica de tijolos às margens do Rio Nilo. Para dar conta de sua existência pobre e massacrante, Maher constrói secretamente uma estrutura feita de lama e outros materiais, até o dia em que a sua criação sucumbe às intempéries do tempo. Uma perturbadora metáfora sobre um país de violência muitas vezes invisível e silenciosa, onde as pessoas simplesmente existem… ou desaparecem.

 barrage  Cena de Le Barrage (Foto: Divulgação)

 

De Humani Corporis Fabrica (França/Estados Unidos/Suíça – diretores: Verena Paravel e Lucien Castaing-Taylor)

Um documentário – de tirar o fôlego para uns e embrulhar o estômago para outros – que explora o corpo humano de forma clínica e íntima na tela grande. A câmera dos diretores capta com minúcia as intervenções cirúrgicas em mesas de operações de cinco hospitais de Paris. Uma visita sensorial e literalmente imersiva ao trabalho de cirurgiões no manuseio de câmeras robóticas em cirurgias de cérebro, estômago, próstata, olhos etc, além de partos, cirurgias ortopédicas e autópsias. Os diretores mostram os lados mais recônditos do corpo humano, ou seja, o nosso interior, enquanto buscam desmistificar a figura dos cirurgiões mostrando seu lado mais mundano. Com imagens quase expressionistas, ousadas e pós-modernas, e usando tecnologia que talvez não estivesse disponível até recentemente, De Humani Corporis Fabrica de certa forma remete aos filmes apelativos do documentarista brasileiro Primo Carbonari (1920-2006) nas décadas de 60 e 70.

 humani Cena de De Humani Corporis Fabrica (Foto: Divulgação)

 

  

Para saber mais sobre o Festival IndieLisboa: https://indielisboa.com/