INTERVENÇÕES FICCIONAIS ENFRAQUECEM AS IMPORTANTES DENÚNCIAS DE “O AMIGO DO REI”.

Por Celso Sabadin.

Por negligência da mineradora Samarco, uma barragem de resíduos de mineração se rompe em Minas Gerais, arrasando o vilarejo de Bento Rodrigues. Seus habitantes perdem tudo, de casas a lavouras, e querem ressarcimento da Samarco. A empresa, porém, é responsável por 80% do orçamento da prefeitura da cidade de Mariana, ali perto. Com a Samarco fechada por causa das investigações sobre o crime, a população de Mariana rapidamente empobrece. Resultado: habitantes de Mariana, empobrecidos, passam a hostilizar e a ameaçar a população de Bento Rodrigues, agora vilanizada por exigirem seus direitos. Os rodriguenses são culpabilizados pelos marianenses por estarem no caminho da lama derramada pela barragem rompida. Há um trabalho de base da Samarco para difundir tal ódio entre vizinhos.

Enquanto isso, a Samarco é multada em alguns bilhões de reais, e recebe do governo brasileiro autorização para que o valor da multa seja gerido por uma fundação que recebe o nome de Renovar. A direção da Renovar é entregue à Samarco.

Estas são apenas algumas entre as inúmeras aberrações denunciadas no filme “O Amigo do Rei”, longa que documenta causas, efeitos e consequências de todo um imbróglio jurídico-político-administrativo que tem como finalidades sufocar a voz do povo e garantir o interesse dos poderosos nos recentes casos de rompimentos de barragens em Minas Gerais. Como tudo o que acontece no Brasil, aqui também o capital é intocável e o ser humano é descartável, conforme escancara o filme.

Infelizmente todo este importante trabalho de pesquisa e denúncia é seriamente comprometido por opções estéticas e de linguagem das mais infelizes. A fluidez documental é quebrada várias vezes por Intervenções ficcionais, caricatas e infantis, que tentam satirizar a trajetória de políticos e lobistas durante o processo, mas que mais parecem ter saído de um programa de humor raso, totalmente incoerente com a própria seriedade do tema abordado. Lamenta-se também o uso intermitente, excessivo e desnecessário da trilha sonora que não dá praticamente nenhum descanso aos ouvidos do espectador. Coloca-se música de fundo até em depoimentos tomados sem as condições ideais de captação de áudio (cenas em congressos e debates, por exemplo), provocando um desconforto auditivo difícil de digerir durante as quase duas horas e meia de projeção.

Isso sem contar a estranheza da utilização, depois de uma hora e meia de filme, da presença de um narrador onisciente,  opinativo e não identificado – ferramenta comum em documentários antigos – que não havia sido utilizada até então e que surge como forte ruído na linguagem até então desenvolvida.

Talvez não dê mais tempo, mas um trabalho sério de reedição conseguiria potencializar bastante a força do importantíssimo conteúdo apurado em “O Amigo do Rei”.