JÁ NOS ANOS 1920, CARL DREYER ABORDAVA HOMOSSEXUALIDADE E MACHISMO. CONFIRA EM DVD.

Por Celso Sabadin.

Um dos cineastas mais marcantes da era muda do cinema, mas que também conseguiu como poucos fazer a transição para os filmes falados, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) é tema e objeto de importante lançamento em DVD assinado pelo selo Obras Primas do Cinema. Tendo como título o próprio nome do cineasta, o lançamento é um “digipack” com dois DVDs apresentando versões remasterizadas de três longas-metragens e sete curtas do autor, mais alguns extras especiais.

Os longas são as pequenas preciosidades “A Quarta Aliança da Sra. Margarida” (Prästänkan, 1920), “Michael” (Mikael, 1924) e “A Queda do Tirano” (Du skal ære din hustru, 1925). Os três encantam, antes de mais nada, pela simplicidade de suas narrativas diretas, e pela espontaneidade de seus elencos, o que confere ao conjunto da obra uma naturalidade e uma modernidade raramente vistas nos filmes daqueles longínquos anos 1920.

“A Quarta Aliança da Senhora Margarida” é uma envolvente e bem equilibrada mistura de drama com comédia romântica. Tudo se passa numa bucólica vila no interior, onde Sofren se candidata à vaga de pastor na minúscula paróquia local. Após bater seus concorrentes num hilariante “processo de seleção” que consiste em proferir sermões para uma plateia de ouvintes “especializados”, Sofren consegue a tão sonhada vaga. Mas tem uma surpresa das mais inesperadas: para ser efetivado, diz a tradição local que ele deve se casar com a viúva do pastor anterior… que está longe de ser uma beldade…

É notável a habilidade de Dreyer, neste filme, em transitar com leveza pelo humor, pela chacota, pelo drama, pela morte e pelo romance. O longa permeia com desenvoltura as mais variadas facetas da alma humana, incluindo mentiras, traições, arrependimentos e paixões. A dupla de protagonistas entrega interpretações repletas de frescor que nada lembram as antigas performances exageradamente gestuais, típicas daquele momento do cinema.

Já “Michael” é mais denso. E apresenta um forte subtexto homossexual, comprovando mais uma vez que tematicamente o cinema europeu sempre foi menos conservador que o norte-americano, abordando assuntos considerados tabu com muito mais desenvoltura.

A trama mostra o relacionamento (que beira o simbiótico) entre o renomado pintor e escultor Zoret, e seu pupilo e assistente Michael. Um relacionamento abalado pela chegada de Zamikoff, uma bela aristocrata que deseja ser imortalizada pela obra de Zoret, mas que acaba encantando Michael. O distanciamento, a solidão e a nostalgia formam o pano de fundo desta bela obra sobre o amor.

Se “Michael” enfoca a homossexualidade, “A Queda do Tirano” trata abertamente de outro tema dos mais presentes em nossa sociedade: o assédio moral provocado pelo machismo. O longa mostra um marido extremamente agressivo que trata a esposa e os filhos com desrespeito e autoridade desmedidos. Sua antiga babá de infância trama então uma solução para o caso.  Com ares de “lição de moral”, “A Queda do Tirano” é mais discursivo e até didático em relação aos outros longas da caixa, e acaba encontrando na manutenção (ou dissolução) do núcleo familiar o seu tema principal.

 

Núcleo familiar, inclusive, que tem influência direta sobre a obra de Dreyer. Filho bastardo de uma empregada doméstica sueca, Carl foi entregue para adoção ao casal Dreyer, de quem acabou assumindo o mesmo nome do pai adotivo. Criado com a austeridade dos princípios da educação luterana, ele só ficou sabendo de suas origens quando adulto. Coincidentemente ou não (é mais provável que não), é marcante em sua obra a presença de simbolismos e temas ligados à religião.

Após terminar os estudos, afastou-se da família, trabalhou em escritórios e chegou a ser jornalista, fundando seu próprio jornal em 1910. Entrou para o cinema como escritor de legendas (lembrando, claro, que se trata da época muda), logo passando a escrever roteiros e a realizar montagens para as produções da Nordisk Film.

Seu primeiro trabalho como diretor foi o drama “O Presidente”, em 1918, quando chamou atenção ao solicitar cenários os mais simples possíveis e dispensar maquiagem para os atores. De lá até 1964 dirigiu mais de 20 filmes e escreveu mais de 50, entre longas e curtas. Em 1955 chegou a ganhar um cobiçado Leão de Ouro no Festival de Veneza com “A Palavra”, mas talvez sua obra mais reconhecida e icônica seja “O Martírio de Joana D´Arc”, de 1928, um primor de câmera, técnica e montagem a serviço da representação da dor e da angústia.

Os curtas presentes no digipack são basicamente trabalhos institucionais que Dreyer realizava para o poder público, exaltando programas sociais do governo ou questões relacionadas à valorização do patrimônio cultural. Mas é impossível não notar, com uma certa perplexidade, a letra de uma canção infantil entoada no curta “Auxílio Materno” (Mødrehjælpen, de 1942), onde um coro de crianças canta alegremente: “Pobre negrinho, pobre negrinho, ele nasceu inteirinho preto e vai ter que ficar assim a vida inteira”.

Dreyer morreu de pneumonia em Copenhague, em 20 de março de 1968, aos 79 anos de idade. Seria uma excelente ideia se a Obras Primas disponibilizasse no mercado mais alguns de seus longas. Fica a dica.