JAPONÊS “GODZILLA MINUS ONE” VAI ALÉM DO SIMPLES FILME DE MONSTRO.

Por Celso Sabadin.

Estreando nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 14/12, “Godzilla Minus One” não é apenas mais um filme qualquer sobre Godzilla.

Antes de mais nada, um pouco de história: o primeiro “Godzilla”, o original, é uma produção da Toho, de 1954, dirigida pelo grande Ishiro Honda. Consta que o produtor da Toho, Tomoyuki Tanaka, teria desenvolvido a ideia ao sobrevoar o atol de Bikini, local que ficou mundialmente famoso por ser palco de várias experiências com bombas nucleares. Tanaka teria imaginado um roteiro onde a força de uma destas explosões libertaria um terrível monstro que por ali hibernava há milhões de anos. Nasce assim Godzilla, neologismo que combina as palavras japonesas “gorira” (gorila) e “kujira” (baleia).

Contudo, outra versão afirma que “Godzilla” teria se inspirado na produção estadunidense “O Monstro do Mar” (The Beast from 20.000 Fathoms), de 1953, também sobre um gigantesco ser destruidor libertado pela energia nuclear.

Polêmica a parte, o fato é que “Godzilla” marcou época e transformou-se ao longo das décadas numa franquia internacional, com dezenas de continuações e spin-offs, além de incontáveis imitações de qualidade mais que duvidosa. E não por acaso. O filme acabou se tornando um marco histórico, um verdadeiro manifesto político que, depois de nove anos, finalmente transformava em catarse o pânico da população japonesa em relação aos terríveis episódios de Hiroshima e Nagasaki.

“Mal sobrevivi a Nagasaki, e agora isso…” diz uma das personagens do filme, referindo-se ao monstro. “Precisamos encontrar um lugar para nos esconder”, responde seu interlocutor. “Não, eu não aguento mais fugir”, finaliza a desolada personagem.

Cabe aqui uma explicação. Apesar das duas primeiras bombas atômicas terem devastado parte do Japão em 1945, foi somente em 1952 que os nipônicos voltaram a ter liberdade dentro de seu próprio país, com o fim da ocupação estadunidense. Entre 45 e 52 prevaleceu uma forte censura norte-americana sobre o Japão, onde vários fatos e ideias eram terminantemente proibidos de ser veiculados. Entre eles, os efeitos devastadores da radiação disseminada pelas explosões nucleares. O Japão e o mundo foram mantidos em ignorância sobre o fato, já que os EUA não divulgavam suas pesquisas no setor. E impediam que outros o fizessem. Somente após 1952 os meios de comunicação japoneses – cinema inclusive – começaram a discutir a questão, e “Godzilla” vem na esteira desta discussão.

Assim, “Godzilla” é muito mais que apenas um simples filme de monstro. Ele é o exorcismo de toda uma população, um grito de socorro e de indignação contra o massacre que o início da era atômica provocou no país.

A boa notícia é que, mesmo depois de tantas sequências, este novo longa merece a atenção do fã de cinema. “Godzilla Minus One” não trilha os caminhos da mesmice dos chamados “filmes de monstro”, em que a espetacularização da destruição supera a dramaturgia. Pelo contrário: aqui, o drama de seus protagonistas é mais intenso que a parafernália destrutiva.

A ação se inicia nas semanas finais da 2a. Guerra, o que já é, por si só, um diferencial do longa, posto que nenhum filme anterior de Godzilla se passa antes dos anos 1950. É em clima de derrota eminente que o piloto Shikishima (Ryunosuke Kamiki) se refugia em uma ilha do Pacífico onde funcionam os serviços de manutenção dos aviões de guerra japoneses. Shikishima se recusa a prosseguir em sua missão, alegando problemas em seu avião, mas na verdade ele tem medo, sentimento visto com péssimos olhos pelos soldados que lutam pelo imperador. Piorando ainda mais a situação do piloto, a ilha onde ele se refugia é violentamente atacada por Godzilla, sem que ele consiga salvar seus companheiros e conterrâneos.

Terminada a Guerra, Shikishima é um sobrevivente, mas a culpa o corrói intensamente. Seu país, devastado e agora dominado por forças estadunidenses, nem tem tempo para chorar seus mortos: o inimigo agora vem das profundezas do mar, e não há exército algum para combatê-lo. Abandonada à própria sorte, a população civil terá de encontrar uma solução para tentar derrotar o monstro.

“Godzilla Minus One” traz várias camadas de leituras dramatúrgicas que provavelmente falarão mais de perto ao público oriental. Entre elas, a vergonha de um piloto kamizake que não teve a (estranha, para nós) coragem de se matar por seu país. Já o abandono da população civil pelas forças políticas – tanto as derrotadas como as vitoriosas – é uma realidade que nós, mesmo sem termos passado por grandes guerras, conhecemos muito bem.
A família inadvertidamente formada por remanescentes de outras famílias dizimadas provavelmente é um dos conceitos mais belos e poéticos do filme.

O estilo nipônico de interpretação poderá em vários momentos nos soar exagerado, e a preocupação narrativa de deixar tudo muito bem explicado e amarrado poderá igualmente causar alguma estranheza ao fã de um cinema japonês – digamos – mais introspectivo e contido, como o dos grandes mestres daquele país. Mas é preciso levar em conta que “Godzilla Minus One” também tem altas pretensões comerciais, e neste sentido é inevitável que realize suas concessões. Mesmo assim, fica acima da média para o gênero, e tem os grandes méritos de levantar questões sensíveis e de não submeter sua dramaturgia à ditadura fácil da zona de conforto.

A direção e o roteiro são de Takashi Yamazaki, cineasta premiado com cerca de 20 filmes dirigidos, mas ainda não muito conhecido pelo público brasileiro.