“KICK-ASS 2″ TEM MUITO MAIS A DIZER DO QUE PARECE.

“Qual a vantagem de usar máscara se não é pra fazer tudo o que se quer?” A frase poderia ter sido dita por algum manifestante do grupo Black Bloc, mas na verdade ela é do perigoso e patético vilão The Motherfucker, do filme “Kick-Ass 2”. Assim como já havia acontecido com o primeiro episódio, de 2010, esta continuação também chega aos nossos cinemas prejudicada por um tipo de divulgação que reforça o equivocado preconceito de que o filme é apenas uma tonta comédia de ação para o adolescente médio americano.
Quem se dispuser a ver “Kick-Ass 2” apenas como uma tonta comédia de ação para o adolescente médio americano pode até se divertir. Mas o roteiro de Jeff Wadlon (também diretor do filme), a partir dos quadrinhos de Mark Millar, tem muito mais a dizer.

Para quem não está familiarizado com os personagens, o filme mostra Dave Lizewski (vivido por Aaron Taylor-Johnson) um rapaz tímido igual a milhões de outros que em meio a suas elocubrações normais de adolescente um dia se pergunta: com tanta gente maluca por aí, por que ninguém coloca uma roupa esquisita e sai pelas ruas bancando o super herói de verdade, fazendo justiça de verdade? Sem obter resposta, ele mesmo decide fazer isso: compra uma roupa de mergulhador, assume o nome Kick-Ass, e sai por Nova York tentando fazer o Bem. Tudo isto está no primeiro filme.

Comediazinha besta? Nem tanto. A partir desta premissa, o filme levanta interessantes questões sobre o comportamento da sociedade atual. Por exemplo: ao apanhar brutalmente de 3 assaltantes, Kick-Ass pede socorro a um jovem que vai passando pela rua e que, ao invés de chamar a lei, corre para uma lanchonete e convoca outro punhado de pessoas… para que tudo seja filmado pelos celulares e compartilhado pelas redes sociais. Kick-Ass diz: “Eu estou aqui apanhando de 3 caras, aparece um monte de gente pra filmar, e sou eu que tenho problemas?”.

Esta cultura da inanição e da indiferença, associada à febre do compartilhamento vazio e à busca incessante da fama pela fama, fazem de “Kick-Ass” (tanto o 1 como o 2) um marcante painel crítico e comportamental do nosso tempo. No início do segundo episódio, quando vestir uma roupa esquisita e bancar o super-herói passa a ser um ato banal, fica claro o total descrédito pelas autoridades constituídas, pelas instituições estabelecidas, e agora cada um é seu próprio super-herói, com suas próprias leis, geralmente movidas pelas vingança. Percebe-se uma releitura adolescente do lema “justiça pelas próprias mãos”, tão em voga naqueles anos 80 marcados pela Era Reagan.
O próprio personagem do Coronel Stars & Stripes (Jim Carrey) já é uma sátira a este pensamento bélico.
Não por acaso, o filme usa e abusa de cenas de desproporcional violência, ao mesmo tempo em que é praticamente virgem em relação ao sexo. Reflexo da sociedade do país que o produziu, “Kick Ass” não só admite como explora vorazmente o sangue, enquanto nega peremptoriamente qualquer demonstração mais explícita de sexualidade, esta sim verdadeiramente transgressora para os puritanamente hipócritas norte-americanos.

Tudo se dirige ao adolescente, mas não da forma infantilizada como geralmente o blockbuster americano propõe. Temos aqui os arquétipos dos ritos de passagem, onde os valores das gerações anteriores até são herdados, em maiores ou menores proporções, mas onde também é necessária a ausência dos pais para que o rito se complete e se perpetue. Repare na quantidade de pais e mães mortos que permeiam ambos os filmes.

Chama a atenção também no filme outro traço bastante marcante da cultura norte-americana: a dificuldade em discernir realidade de ficção. Imensa Disneyword, os EUA fomentam em seus usos e costumes uma confortável zona de conforto entre o que de fato acontece e o que a mídia deseja que seja verdade. Até hoje boa parte da população realmente acredita que eles são os guardiões mundiais da democracia, e que as guerras são necessárias, o que, neste sentido, torna icônica e fundamental a figura do super-herói. Ao aproximar definitivamente os heróis da ficção com os supostos heróis das ruas, onde a roupa extravagante é o único sinal evidente de discernimento social, o filme brinca inteligentemente com esta impossibilidade americana de enxergar a realidade fora de seu quintal. Tanto que há “heróis” que sequer se importam pelo fato de seus super-poderes sejam fingidos. O que importa mesmo é que eles sejam reais diante dos olhos das redes sociais, e que isso possa garantir cada vez mais likes, views, shares, ou seja lá o nome que for.

É a santificação dos valores virtuais em detrimento do real, ajudando a formatar uma sociedade cada vez mais distante da realidade, ungida com sangue, abençoada pela violência, e com seus cânones fortemente fincados nas aparências e no individualismo absoluto.

Claro, mas quem preferir pode ver “Kick-Ass 2” também como apenas uma tonta comédia de ação para o adolescente médio americano…