LANÇADO EM DVD, “A FORÇA DO MAL” TRAZ VIBRANTE DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DA LEI E DA ÉTICA.

Por Celso Sabadin. 

As bancas de apostas se agitam com a proximidade de mais um aniversário da independência dos EUA. Mas o motivo de tanta agitação não é nada patriótico: tradicionalmente, é nesta data que boa parte da população do país aposta no número 776 numa espécie de “jogo do bicho” local, ilegal, mas tolerado. Se for sorteada a centena que remete ao ano da independência, várias bancas quebrarão. É neste cenário que o poderoso empresário Ben Tucker (Roy Roberts) arquiteta um plano para manipular, forjar e dominar o mercado do jogo. E para isso ele precisa contar com a ajuda de John Morse (John Garfield), seu advogado muito fiel e pouco escrupuloso. Porém, como nada é simples nas tramas do cinema noir, John tem um irmão que entrará em falência se o plano de Tucker der certo, o que gera um forte conflito interno no advogado.

O roteiro de Ira Wolfert, a partir do seu próprio livro “Tucker´s People”,  explora com maestria um dos pontos mais vitais do cinema noir: o questionamento dos limites éticos, morais e legais. Tucker é, a rigor, um criminoso inescrupuloso, mas amparado por uma suposta legitimidade social que prefere encará-lo como um astuto e temido homem de negócios. Na outra ponta do raciocínio, Leo Morse (Thomas Gomez, em ótima interpretação), o irmão de John, mesmo sendo também um criminoso, atrai para si a empatia da plateia: afinal, trata-se de um homem bondoso que cuida com carinho dos funcionários de sua banca ilegal de apostas. E seu crime seria “menor”,  já que não é socialmente bem sucedido e poderoso como Tucker, o que acaba provocando um olhar condescendente por parte do público.

No meio de ambos, John é a perfeita personificação de uma época em que o cinema borrou as fronteiras entre “bandidos” e “mocinhos”: se por um lado ele é um advogado de um grande escritório (e, teoricamente, defensor da lei), por outro lado ele rompe os limites éticos de sua profissão ao se associar com seu principal cliente, reconhecidamente um crápula. Discute-se no escritório de advocacia que seria lógico, ético e moral defender o crápula, mas não se associar a ele, num belo exercício de retórica a serviço da hipocrisia.

Pelo lado humano, ao perceber que associar-se diretamente ao crime poderia prejudicar seu irmão, John tenta o caminho mais lucrativo: trazer o irmão, já adepto da “pequena contravenção”, para o lado do “grande crime”, passando assim o recado que roubar pouco é bobagem.  Ele não contava, porém, que Leo lutaria pelo seu direito de continuar sendo apenas um “pequeno criminoso”. O questionamento dos limites da lei e da ética é fascinante. Como se a vida de John não estivesse complicada o suficiente, ele ainda se apaixona por Doris (a carismática Beatrice Pearson, numa de suas apenas duas participações no cinema), a jovem e inocente funcionária de Leo, que acaba sofrendo ela própria de uma crise de consciência ao perceber o mundo de jogos e interesses ilegais em que estava metida. Tal subtrama romântica amplia ainda mais a discussão dos conflitos morais que o filme incita.

Considerado como um dos melhores filmes noir já realizados, “A Força do Mal” marcou a estreia na direção (e também no roteiro, que coassinou com Ira Wolfort) de Abraham Polonsky. O filme, contudo, foi lançado inapropriadamente na época do Natal de 1948, e não fez sucesso. Redescoberto nos anos 60, acabou sendo mais tarde apontado como uma das grandes influências de Coppola em seu “O Poderoso Chefão”. Polonsky, por sua vez, teve sua carreira praticamente encerrada menos de três anos após o lançamento deste seu longa de estreia, ao ser inserido na lista negra do macartismo e, assim, impedido de trabalhar. O título “A Força do Mal” não poderia ser mais apropriado.

A FORÇA DO MAL (Force of Evil, 1948, 78 min). De Abraham Polonsky. Com John Garfield, Thomas Gomez e Beatrice Pearson.