MALICIOSO, RACISTA E INTRIGANTE, “GARRAS AMARELAS” MARCA O CINEMA DE GUERRA DOS EUA.

Por Celso Sabadin.

Valendo um milhão de dólares: em qual filme estreado em 1942 Humphrey Bogart interpreta o personagem Rick? Quem disse “Casablanca”, acertou. Quem respondeu “Garras Amarelas” também.

Naquela época em que o cinema era literalmente uma fábrica (de sonhos ou não) e que seus astros, estrelas, diretores e técnicos eram funcionários contratados e pagos por semana, a máquina não podia parar. Assim, Bogart mal teve tempo de tirar umas feriazinhas entre o último dia de filmagens de “Garras Amarelas” (2 de maio de 1942) e o primeiro de “Casablanca” (25 do mesmo mês). Mal trocou de figurino… e de nome de personagem.

 

A Segunda Guerra já corria solta, e o público tinha na sala escura do cinema o refúgio ideal para suas aflições. Neste cenário misto de medo e patriotismo inflamado, “Garras Amarelas” estreia na esteira do histórico episódio de Pearl Harbor. A ação se inicia ambientada em 17 de novembro de 1941, momento em que Rick (Bogart, claro) é expulso do exército americano por algum motivo que só será esclarecido mais tarde. Deprimido, ele embarca em um navio japonês rumo ao Oriente, onde se encontra com um pequeno grupo de intrigantes personagens que desenvolverão uma trama de espionagem tão em voga naquele momento. Entre eles, a disponível Alberta (Mary Astor) e o misterioso Dr. Lorenz (Sydney Greenstreet). Como só poderia acontecer, o desfecho da história só acontecerá no fatídico 7 de dezembro de 41.

Repleto de diálogos espirituosos, o roteiro de Richard Macauley foi adaptado do folhetim “Aloha Means Goodbye”, de Robert Carson, publicado no Saturday Evening Post entre junho e julho de 1941. Ironicamente, o texto original advertia sobre a possibilidade de um ataque japonês aos Estados Unidos, o que de fato aconteceu, obrigando o filme a alterar sua ação dramática para o Panamá. Trata-se, aliás, de um roteiro carregado de racismo contra os então inimigos orientais. “Eles são todos iguais, se você não olhar de perto”, “É um povinho interessante”, “Será que eles têm sentimentos iguais aos nossos?” e “É um povo que fornece bons empregados” são alguns dos ataques verbais desferidos contra os nipônicos, durante a narrativa.

Não faltam também insinuações maliciosas que contribuíam para driblar a feroz censura que o infame Código Hays impunha ao cinema norte-americano desde a década anterior. Entre elas, Rick se orgulhando diante de Lorenz ao dizer que “o meu é maior que o seu” (teoricamente eles falavam de revólveres).

Há também citações e/ou piadas internas com os nomes dos personagens. Além dos já citados “Ricks”, o sobrenome da personagem Alberta é Marlow, que remete diretamente a Philip Marlowe, o detetive criado pelo escritor Raymond Chandler em “The Big Sleep”, publicado em 1939 (e que viraria filme em 1946 estrelado justamente por Bogart). E o nome do personagem interpretado por Lee Tung Foo, uma espécie de protetor de Rick, é nada menos que Sam, nome do famoso pianista amigo do outro Rick, o de “Casablanca”. Além disso, Mary Astor e Sydney Greenstreet já haviam contracenado com Bogart no clássico “Relíquia Macabra”, do ano anterior.

Tudo isso dirigido por John Huston, que teve de abandonar o filme pouco antes de concluí-lo para dirigir documentários promocionais do governo estadunidense, como parte do esforço de guerra. Com a ida de Huston ao front, as cenas finais de “Garra Amarela” ficaram a cargo de Vincent Sherman, não creditado.

“Garras Amarelas” estreou em setembro, e “Casablanca” em novembro de 1942, um ano depois de “Relíquia Macabra”. Que safra!