“MARIGHELLA” TOCA EM FERIDAS ABERTAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA.

Por João Moris, de Berlim

O aguardado filme Marighella, de Wagner Moura, estreou ontem ( 14/02) na Berlinale, em sessão exclusiva para a imprensa. É um thriller político tenso e intenso, que adquire uma dimensão maior por ser inspirado em fatos verídicos e trágicos da história recente do Brasil e que lamentavelmente ameaçam voltar.

O filme se baseia no livro “Marighella – o homem que incendiou o mundo”, lançado em 2012 pelo jornalista Mário Magalhães, e conta uma parte da trajetória do político comunista, guerrilheiro e escritor brasileiro, Carlos Marighella (1911-1969). Marighella foi o fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), o primeiro grupo armado que combateu a ditadura no Brasil na década de 60. O filme é quase todo centrado nas ações da ALN a partir de 1968 e na perseguição implacável dos militares aos guerrilheiros, culminando no assassinato de Marighella em São Paulo no final de 1969, época em que era considerado o “inimigo número um do Brasil”.

Wagner Moura parece ter encontrado um ponto de equilíbrio entre ação e drama. Talvez buscando conquistar um público mais amplo, o filme é contado de forma didática e direta com pequenas elipses de tempo. Marighella tem uma tensão contínua que envolve o espectador, sem descuidar dos aspectos históricos da trama. O grande trunfo do filme para mim é o diretor não ter endeusado a figura de Marighella, o que seria uma tentação fácil dada a importância do personagem para a esquerda brasileira, ainda mais neste momento de polarização do país. Carlos Marighella é retratado como um líder ponderado, preocupado com o bem estar de sua família, dos seus companheiros e da sociedade, mas ao mesmo tempo ambíguo em relação à sua influência sobre as ações armadas dos membros da ANL, em média 30 anos mais jovens do que ele.

Wagner Moura habilmente toca em feridas abertas na sociedade brasileira para polemizar. A começar, pela escolha de um ator negro para viver o personagem principal caçado pela polícia (Seu Jorge, em atuação inspiradíssima). Marighella era neto de escravos, mas não tinha a pele negra. O diretor também mostra que grande parte da classe média parecia apoiar o golpe, além de mostrar o envolvimento descarado do governo dos Estados Unidos com a repressão militar no Brasil.

Porém, uma das figuras mais polêmicas do filme é, sem dúvida, o delegado Lúcio (Bruno Gagliasso, brilhante), inspirado no violento policial Sérgio Fleury, que já foi retratado em outros filmes sobre a ditadura brasileira, como Pra Frente Brasil (1982), Lamarca (1994) e Batismo de Sangue (2007). Em Marighella, ele é a única autoridade presente no filme, negociando com os militares americanos, aterrorizando jornalistas, perseguindo, torturando e matando os guerrilheiros. Wagner Moura não se deteve em pintar o delegado com tintas maniqueístas, mostrando o abuso grosseiro de poder e os monstros que um regime militar descontrolado pode produzir. Dito isto, o filme tem uma única cena de tortura, muito contundente, mas deixa claro o emprego desmedido da força contra os membros da ALN ao serem dizimados.

O filme de Wagner Moura é recheado de provocações que irão dar o que falar, ainda mais no momento atual do país, em que as autoridades insistem em chamar de “movimento” uma ditadura militar que durou 21 anos. Marighella tem potencial para ser visto por audiências brasileiras distintas e suscitar discussões mais do que necessárias. Ainda sem previsão de lançamento no Brasil, o filme passa hoje, 15/02, em duas sessões de gala no gigantesco auditório do Berlinale Palast, seguido de uma coletiva de imprensa com o diretor e o elenco, e amanhã será exibido em três sessões. Vejamos como reagirá a imprensa internacional.