“MATO SECO EM CHAMAS”: A LAMA DAS ENTRANHAS DO BRASIL.

Por Celso Sabadin.

Deixar tudo explicadinho – cada cena, cada personagem, cada ação – provavelmente é o pior entre todos os malefícios que o cinema comercial dominante estadunidense legou à civilização ocidental. Neste tipo de cinema, não restam dúvidas. Cada cena se inicia com sua localização geográfica determinada, cada personagem é bem desenhadinho dentro dos arquétipos esperados, cada ação está perfeitamente encaixada dentro das relações causa/efeito. E, consequentemente, cada espectador de cada filme se instala passivamente na sua poltrona de conforto, de maneira que cada balde de pipoca possa ser vorazmente consumido. E caso ainda reste alguma dúvida, relaxe: um letreiro final explicará tudo, para que ninguém saia do filme incomodado.

Felizmente. “Mato Seco em Chamas” é o oposto disso tudo. O filme veio para incomodar, perturbar, causar, provocar. E não para explicar, como dizia Chacrinha. E quem conhece a obra de Adirley Queirós (“A Cidade é uma Só”, “Branca Sai Preto Fica”) sabe que o cultuado cineasta de Ceilândia faz isso como poucos. Neste seu novo longa, Queirós ganha parceria na direção com a portuguesa Joana Pimenta, o que acrescenta ainda mais qualidade ao filme.

Ambientado no mais abandonado fim de mundo (também conhecido como Ceilândia), “Mato Seco em Chamas” se centraliza em Chitara e Léa, duas irmãs que desviam petróleo de um oleoduto subterrâneo, para refiná-lo e vender a gasolina aos motoqueiros da região. Tal ato revolucionário de desobediência civil se insere no contexto apocalíptico daquela microrregião que – na verdade – acaba sendo representativa do caos nacional. O descaso, a polarização política e a guerra insana pela sobrevivência explodem como manifestações legítimas e violentas dos eternos excluídos.

O retrato sensorial/social composto pelo longa é dos mais criativos e impressionantes. Combinando as linguagens da ficção e do documental, bem como as estéticas de ficções científicas distópicas e do western, a dupla Queirós/Pimenta eleva o cinema brasileiro a um outro patamar, a uma representação simbólica de um país que verte lama e carência absoluta por todos os seus poros. É o retrato sem retoques deste Brasil profundo que não para de afundar. Impossível não lembrar do primeiro “Mad Max”.

“Acredito que o Brasil esteja em busca de uma certa sensibilidade, já que sensibilidade é definida por classe, território e pensamento. O cinema brasileiro tem a necessidade de retratar a realidade, e se assume que a câmera estática não permite esse tipo de sensibilidade, caindo então num formalismo. Para nós, esse formalismo deu uma nova força para a realidade. Estabelecemos um código, no qual a energia pertence aos personagens”, conta Adirley sobre as escolhas estéticas da dupla em entrevista à Variety.

“Procuramos mulheres que tinham uma história que trazem uma melancolia, cujos rostos e corpos são marcados por essa história de liberdade e aprisionamento. Uma geração inteira que foi encarcerada e tem o sentimento de não saber se está no presente, passado ou futuro. Você vai para a prisão e o que para você é um dia, para o resto do mundo são anos. É quase coisa de ficção-científica. O tempo é relativo”, explica Joana.

Filmado com atrizes e atores  não profissionais, “Mato Seco em Chamas”  é uma coprodução Brasil/Portugal que teve sua estreia mundial no 72º Festival de Berlim, passando depois por um amplo circuito de 36 festivais pelo mundo todo, onde obteve 27 premiações.

A estreia nos cinemas do Brasil é nesta quinta, 23/02, prevista para Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.