MENORES E MAIORES ABANDONADOS NO ÓTIMO “CAMPO GRANDE”.

Por Celso Sabadin.

Principalmente para quem tem filhos, o tema, por si só, já é dos mais perturbadores: crianças abandonadas. Mas em “Campo Grande” a roteirista e diretora Sandra Kogut consegue imprimir ainda mais tensão ao assunto. Da primeiríssima à última cena nos pegamos com o corpo retesado, segurando firme a poltrona do cinema, mergulhados até o pescoço no drama daquelas duas crianças (os ótimos Ygor Manoel e Rayane do Amaral, sem nenhuma experiência anterior em interpretação) que foram simplesmente deixados pela mãe diante da portaria de um prédio de classe média do Rio de Janeiro, com a promessa não cumprida de voltar logo. Sandra não nos coloca dentro da história: nos arremessa nela, como a mãe arremessou seus filhos num novo universo desconhecido e ameaçador para eles.

A diretora trabalha com uma câmera fechada e hesitante que transmite com eficiência toda a sensação de medo, sufoco e instabilidade de seus protagonistas. O Rio de Janeiro, em obras para a Copa do Mundo, transforma-se num campo de batalha que remete muito mais a um Iraque ou a um Afeganistão que propriamente à tão badalada Cidade Maravilhosa. Mesmo porque, para aquelas crianças, esta cidade nada tem de maravilhosa. Pelo contrário, britadeiras, pó, muito barulho (o trabalho de som do filme é notável), automóveis e escavadeiras criam uma ambientação das mais ameaçadoras. É quase um filme de horror.

Pelo lado de Regina (Carla Ribas, de “A Casa de Alice”), a mulher de classe média assustada pela inesperada e compulsória responsabilidade de cuidar – ou se livrar – de duas crianças, o caos não é menor. Em processo de separação do marido e de conflitos com a filha, ela remexe em dolorosas caixas e pacotes físicos e emocionais enquanto providencia suas mudanças de apartamento e de vida. Duas crianças em seu caminho não é, definitivamente, o que Regina precisa neste momento. Ou talvez seja.

Sem perder suas próprias e marcantes personalidade e originalidade, “Campo Grande” referencia elementos de “Central do Brasil” e “Casa Grande” ou mesmo “Que Horas Ela Volta?”. É praticamente impossível não lembrar do premiado filme de Walter Salles ao ver aquele garoto sendo ajudado na busca pela família por uma senhora que mistura medo e boa vontade. Há até uma cena que de certa forma homenageia “Central do Brasil”, ao retratar o porteiro do prédio escrevendo uma carta para o menino, supostamente analfabeto, endereçada para a mãe ausente.

Já as referências a “Casa Grande” e a “Que Horas Ela Volta?” provavelmente devam ser creditadas ao momento de transformação de um país que se reforma (como o próprio Rio de Janeiro) meio que aos trancos a barrancos. Uma reforma estrutural que levanta poeira e faz barulho, e que permite a anteriormente impensada situação de uma empregada que recusa o sofá velho que sua patroa lhe oferece de “presente” pelo fato de ter acabado de comprar um novo. E de três lugares.

É nesta mistura do pessoal com o social, do humano com o político, que “Campo Grande” mostra sua força, sem jamais desandar para o sentimentalismo superficial, por mais que o tema assim o favoreça.

Neste seu terceiro longa (depois de “Um Passaporte Húngaro”  e “Mutum”), Sandra Kogut demonstra num só tempo, talento, maturidade e sensibilidade. “Campo Grande” estreou dia 2 de junho.