“MILAGRE EM ST. ANNA” CAUSA ESTRANHEZA E FAZ PENSAR.

Não é novidade que o cineasta americano Spike Lee tem um gosto todo especial por incomodar suas platéias. Num primeiro momento de sua carreira, ele levantou a bandeira antirracial, e conquistou a crítica de todo o mundo com os filmes “Faça a Coisa Certa”, “Febre da Selva”, “Malcolm X” e muitos outros. Depois de alguns anos, Lee deixou de ser novidade (pecado mortal na indústria do cinema) e conheceu, se não o ostracismo, uma pesada indiferença por parte do público e da mídia. “Ressuscitou” com os ótimos “A Última Noite” e “O Plano Perfeito”, e ultimamente tem se dedicado também a projetos televisivos, fora alguns filmes que sequer chegam mais ao nosso circuito comercial.

Em 2008, o sempre inquieto cineasta fechou uma parceria com a RAI (televisão italiana) e colocou sua produtora (que tem o sugestivo nome de 40 Acres e uma Mula) a serviço de um projeto, no mínimo, intrigante: “Milagre em St. Anna”, filme que chega agora em abril aos cinemas brasileiros.

A ação começa forte, surpreendente, mostrando um simples funcionário dos Correios que – sem nenhum motivo aparente – atira de repente no rosto de um cliente. O homem é preso e a polícia fica intrigada com dois fatos: o assassino tem passado totalmente íntegro e honesto, sem nenhuma ocorrência anterior; e guarda em sua casa uma valiosíssima peça arqueológica italiana que se julgava perdida. A partir daí, o filme se desenvolve num grande flashback que vai buscar na Segunda Guerra Mundial as origens deste crime.

Por mais que, tematicamente, o filme pareça convencional, é bom abrir bem os olhos e os ouvidos para os “incômodos” quase subliminares que Spike Lee parece atirar sobre o público. Por exemplo, a montagem de Barry Alexander Brown (montador de longa data do diretor) não hesita em subverter sem dó nem piedade os velhos conceitos clássicos de eixo de câmera. Vira e revira, torce e retorce o que seria “convencional”, sem pedir licença. Em várias oportunidades, corta e picota cenas dramáticas como se fosse um blockbuster de ficção científica. Provoca.

Vale notar também como Lee explora os planos em perspectivas, como que – consciente ou não – desejasse homenagear o trabalho de câmera que Stanley Kubrik fez em outro filme de guerra: “Nascido para Matar”.

A trilha sonora de Terence Blanchard, também colaborador habitual do diretor, tem momentos solenes que parecem ter sido compostos e orquestrados para um dramalhão antigo e inseridos neste filme, também sem dó nem piedade. Incomoda. E o final, então, é típico de um desgastado melodrama italiano.

Numa leitura apressada, parece que Spike Lee definitivamente perdeu a mão. Uma análise mais apurada, porém, permite uma nova interpretação: “Milagre em St. Anna” provoca e incomoda. Sim, este é o bom e velho Spike Lee de volta, provocando e incomodando – desta vez – mais pelos aspectos formais que propriamente pelo conteúdo. Claro que, uma vez militante, sempre militante. E Lee não se furta em, novamente, levantar a bandeira antirracial para denunciar, en passant, a segregação que os soldados americanos negros sofriam dentro de seu próprio exército. Mas este não seria o tema principal do filme.

Mais importante que a própria denúncia racial, “Milagre em St. Anna” se debruça sobre o eterno e insolúvel binômio Guerra/Paz, clamando contra a imbecilidade de todas as guerras e criando pelo menos um belo momento, na cena em que – em espaços diferentes – negros, bancos, italianos, americanos, militares e civis imploram por Paz, cada qual na diversidade de seu próprio idioma, todos na união do mesmo desejo.

Destaque ainda para a presença do grande ator Omero Antonutti no papel de Ludovico. Entre seus mais 70 filmes, Antonutti esteve em trabalhos importantes do cinema italiano como “Bom Dia Babilônia”, “A Noite de São Lourenço” e ”Pai Patrão”.