MOSTRA SP: EMBATE TITÂNICO-LITERÁRIO EM “O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS”.
Por Celso Sabadin.
Dezembro de 1935. Após 16 anos morando no Rio de Janeiro, o médico e escritor português Ricardo Reis – na verdade, um dos heterônimos de Fernando Pessoa – retorna a Lisboa. Motivo: a própria morte de Pessoa. Envolvidos pelo clima de sonhos e misticismo da capital lusitana, Ricardo e o fantasma de Pessoa encadearão várias e deliciosas conversas sobre vida, morte, amores, solidões.
“Ser e existir só não são a mesma coisa porque temos dois vocábulos diferentes à disposição” afirma, por exemplo, o espectro do poeta. Ou “É inútil o jogo entre o esquecimento que empurra e a memória que puxa: o esquecimento ganha sempre”. Ou ainda, “Quando se morre, vemos a vida de outra maneira” são apenas algumas das preciosidades verbo-existenciais que o filme saborosamente destila. E não por acaso, já que o texto original do livro homônimo em que o filme se baseia é de ninguém menos que José Saramago, que cria aqui sua ponte cultural imaginária com o passado literário português.
Enquanto isso, cruelmente alheia a lirismos, parte da Europa se afunda nas ideologias de direita que destruirão milhões de vidas nos próximos anos. “O Ano da Morte de Ricardo Reis” se desenvolve em clima onírico, dentro dos conhecidos tempos estendidos típicos da produção cinematográfica portuguesa. A verbalização é constante, como não poderia deixar de ser no encontro de dois escritores, enquanto a bela fotografia em preto e branco se encarrega – junto com uma simbólica chuva torrencial – de desenhar a expressionista moldura estética da narrativa.
Unindo todas as pontas, aparando todas as arestas, e agindo como um verdadeiro catalizador da dramaturgia, a irrepreensível atuação de Chico Diaz nos faz jurar, de pés juntos, que este ator nascido no México e radicado no Brasil é de fato um heterônimo pessoense de volta à sua terrinha.
De fato, não há fronteiras geográficas no território das artes.
A programação completa destes últimos dias da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo está em 44.mostra.org