No Vale das Sombras : FERIDAS ABERTAS NA ALMA

É irrefutável: não há cura para os efeitos devastadores de uma Guerra. Na vida cotidiana, na mente e nos sonhos humanos abortados pelo compromisso com a inutilidade de uma guerra inexplicável. Como se em algum caso, uma opção do gênero se pudesse explicar. Em No vale das Sombras, o cineasta canadense Paul Haggis, de Crash – No Limite, Oscar 2006 de melhor roteiro, toca em pontos nevrálgicos em que se desvenda o momento de desumanização globalizada a que temos assistido.

Inspirada no artigo Death and Dishonor (tradução literal, Morte e Desonra), de Mark Boal publicado na revista Playboy em 2004, a obra poderia levar o título de Morte e Desonra tal a identificação entre o título e a essência do filme. O roteiro não pega o espectador pela mão em direção a soluções de óbvia compreensão, mas o instiga a usar a imaginação em seu limite, uma vez que constitui um desafio prever o desfecho do filme. Há que se ressaltar, porém, que não há como não ceder à náusea emocional com o impacto criado por Paul Haggis.

Intrigado pelo desaparecimento do filho, o soldado Mike Deerfield, de volta aos EUA após intensa atuação na Guerra do Iraque, um profundo Tommy Lee Jones, como Hank Deerfield, em atuação interiorizada, econômica, milimétrica, parte em busca de uma verdade que poderá destruir os mitos sobre os quais fundou sua existência.

Veterano na reserva, Hank conduz suas investigações amparado pela detetive Emily Sanders, interpretada pela bela, desglamurizada e precisa Charlize Theron, num filme em que não há cenas de combate, violência explícita, apelos, sejam eles melodramáticos ou de comprovada morbidez, mas onde há o sangue que pulsa no coração já aflito do espectador, a violência embutida nas intenções de ambos os lados, numa guerra em a perversão começa a fazer parte do DNA de uma geração que se tem –lamentavelmente – moldado na morte.

Em casa, a mãe, a comovente Susan Sarandon, um retrato de abnegação e dor aguarda em eloqüente silencio o epílogo envolto em mistérios, que se espera não abale a estrutura de uma vida construída em aparentes heroísmos em que castelos não cessam de ruir desde a Guerra do Vietnã. Repetindo a parceria de O Cliente (The Client, 1994) com Tommy Lee Jones, Sarandon sintetiza um arquétipo de mãe em que todas as mães que aguardam a volta de seus filhos das frentes de combate haverão de se identificar. Sóbria, consistente e pungente como a uma grande atriz que é.

Uma filmografia significativa nos tem ofertado momentos de dolorosa reflexão como o arrebatador Apocalypse Now (Apocalypse Now, 1979) de Francis Ford Coppola; Pecados de Guerra (Casualties of War, 1989) e recentemente Redacted (ainda sem título em português, 2007), ambos de Brian de Palma; Platoon, de Oliver Stone; O Resgate do Soldado Ryan (SAving Private Ryan, 1998) de Steven Spielberg; Soldado Anônimo (Jarhead, 2006) de Sam Mendes; Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jiwa, 2006) de Clint Eastwood, entre muitos outros .

No Vale das Sombras toma a dimensão de um forte punho na boca do estômago em seu aprofundamento na questão não só dos efeitos da eventual ou possível perda de um filho sobre um pai, como também da transformação progressiva de jovens em seres perversos patrocinados por uma Guerra tão sangrenta quanto interminável.

O vale de Elah a que se refere o título do filme faz menção à locação bíblica em que Davi enfrentou o gigante Golias, derrotando-o com seu estilingue e um dos acampamentos dos israelitas durante sua História. Assim, como um Davi, Hank Deerfield enfrenta vários gigantes no périplo de sua investigação de irreversíveis conseqüências.

Não se trata de um filme verborrágico, de retórica ou teses a serem comprovadas, mas construindo a obra como um thriller, Haggis nos faz caminhar por um terreno nebuloso e movediço em que a busca da verdade sobre um soldado pode se tornar um assunto de Estado de proporções incalculáveis.

Tem os traços de uma reportagem sobre efeitos sim, mas sobretudo sobre as causas desses efeitos. A perplexidade se apodera de um espectador incrédulo diante de sua própria incapacidade de agir para transformar o momento presente, numa sucessão de descobertas em que a personagem de Charlize Theron, destemida, toca em nervos expostos que o Poder vigente insiste em camuflar.

A tecnologia dos aparelhos de telefonia celular, com uma simples câmera, é capaz de registrar a solução para vários crimes, com inesperada eficácia. E assim, em seus momentos finais, emergem do filme hipocrisia e sadismo sob a forma de feridas abertas que o tempo tem se mostrado incapaz de curar. O soldado Mike era chamado de “Doc”, diminutivo de Doctor, médico. Que não se espante o espectador com os motivos pelos quais lhe é dado este apelido. A revolta, na poltrona, já se terá instalado há algum tempo e ainda que descortine dores ocultas, o filme não deixa de permanecer no vale das sombras. Um filme contundente, necessário.