O ABISMO SOCIAL DE “ENTRE DOIS MUNDOS”.
Por Celso Sabadin.
Após terminar um casamento de mais de 20 anos, Marianne (Juliette Binoche) sai à procura de um emprego. Porém, como “dona de casa” está longe de ser um bom requisito para colocar num currículo, sem experiência anterior, ela se vê obrigada a aceitar trabalho como faxineira.
Assim começa “Entre Dois Mundos”, drama francês de 2021 que chega nesta quinta, 29/05, aos cinemas brasileiros. Antes tarde do que nunca, pois o filme levanta questões bastante interessantes e pertinentes de maneira atrativa e envolvente.
Mesmo porque ele não trata exatamente do que eu escrevi lá no primeiro parágrafo, mas como estamos no mundo da ficção e eu detesto estragar as surpresas do roteiro (até as pequenas), prefiro deixar para o público as descobertas mais saborosas.
O importante mesmo é que o roteiro de Florence Aubenas, Hélène Devynck e do próprio diretor do filme, Emmanuel Carrère, é hábil em explorar o eterno tema do abismo sóciocultural entre as classes trabalhadoras. Mesmo na França – onde ele é bem menor que por aqui – o tal abismo causa feridas irreversíveis.
Da mesma forma, a direção também é das mais competentes em extrair de todo o seu elenco intepretações memoráveis, recheadas de realismo, afetividade e emoção. O leitor poderia argumentar – e com razão – que não deve ser muito difícil extrair uma boa interpretação de uma atriz de tanta qualidade como Juliette Binoche. A questão, contudo, aqui é outra: ela é a única do núcleo principal de personagens que de fato é atriz profissional. E todas as suas “colegas” faxineiras também arrasam em seus papeis, criando no filme uma fortíssima dose de empatia com o público.
“Entre Dois Mundos” torna-se ainda mais fascinante quando sabemos que sua trama é baseada em acontecimentos reais relatados no livro “Le quai de Ouistreham”, publicado em 2010 pela jornalista Florence Aubenas, que passou pelas mesmas situações da protagonista. E fica melhor ainda com outra informação: o prefeito de Ouistreham, onde o longa é ambientado, não autorizou as filmagens em sua cidade, já que ele teria ficado muito enraivecido com as denúncias das más condições de trabalho das faxineiras feitas pelo filme.
E tem mais: cinco anos antes de publicar seu livro que originou o longa, Florence Aubenas foi sequestrada e mantida em cativeiro quando fazia uma reportagem em Bagdá. Mas isso já seria um outro filme…
“Entre Dois Mundos” venceu o Prêmio do Público de Melhor Filme Europeu no Festival de San Sebastián.