“O ABRAÇO DA SERPENTE” É DENÚNCIA POÉTICA DO MASSACRE CULTURAL DA AMÉRICA DO SUL.

por Celso Sabadin.

A imensidão da selva, seus mistérios, histórias e, principalmente, a extinção definitiva de uma cultura riquíssima sufocada pela ação violenta do colonizador branco. São muitos os vieses pelos quais se pode ver – e principalmente sentir – “O Abraço da Serpente”.

Produzido por Colômbia, Venezuela e Argentina, “O Abraço da Serpente” tem como ponto de partida os diários do biólogo norte-americano Richard Evan Schultes, pioneiro e um dos maiores especialistas em pesquisas de plantas medicinais amazônicas. O filme, porém, não se desenvolve pelo ponto de vista do cientista, mas sim pelo do indígena, o que o torna bem mais interessante e contestador.

O fio condutor da narrativa é dado pelo xamã Karamakate  (interpretado em duas idades por Nilbio Torres e Antonio Bolívar), uma espécie de “elo perdido” entre duas eras distintas da cultura indígena nas Américas. Ou do que resta delas. Solitário e último sobrevivente de seu povo, Karamakate certo dia tem seu isolamento quebrado pela presença de Theo (jan Bijvoet), um homem branco, doente, à beira da morte, que tem no conhecimento do indígena sua única esperança de sobrevivência. Décadas depois, Karamakate recebe outro aventureiro branco, Richard Evan (Brionne Davis), que ambiciona encontrar yakruna, uma planta de fortes poderes de cura. Porém, agora o velho xamã perdeu exatamente o que sua cultura mais preza: a memória.

O filme se desenvolve então alternando paralelamente duas épocas: a busca de Karamakate pela cura de Theo e, anos depois, a procura do mesmo personagem por si próprio e por suas raízes. Nas duas sagas, os protagonistas se embrenham pela belíssima e misteriosa Amazônia, onde encontrarão as marcas indeléveis da destruição da cultura indígena pelo branco, todas elas ligadas à exploração, á morte, ao horror e à religião.

O diretor e coroteirista colombiano Ciro Guerra é hábil em equilibrar seu filme com generosas doses de misticismo, história social e denúncias. A dor de Karamakate ao tomar consciência que perdeu a memória dos ensinamentos dos seus ancestrais e que, consequentemente, não saberá o que transmitir às próximas gerações, o que elimina a própria razão de sua existência, é uma das mais fortes representações cinematográficas da importância das heranças culturais.

A bela e densa fotografia em preto e branco ajuda bastante na criação do clima de magia, e no posicionamento do filme num patamar onírico, de impossibilidade, uma impossibilidade que, infelizmente, todos sabemos ser falsa. Por mais que flerte com o poético, “O Abraço da Serpente” é tristemente verdadeiro.

O filme estreia em São Paulo nesta quinta, 25 de fevereiro, e foi premiado em vários festivais pelo mundo, de Roterdam a Sundance, de Cannes a Mar Del Plata.