“O ABUTRE” É MUITO MAIS QUE UMA CRÍTICA AO JEITO DATENA DE FAZER JORNALISMO.

por Celso Sabadin.

Numa primeira leitura, parece óbvio que “O Abutre” é uma crítica feroz à atração paranoica que o noticiário sensacionalista que vemos diariamente na TV provoca em boa parte das pessoas. Mas não é este o cerne da questão. Mais que isso, o filme tem como base outra grande obsessão da sociedade moderna: o sucesso profissional a qualquer preço. Onde o sensacionalismo televisivo é apenas um de seus inúmeros tentáculos.

A primeira cena do filme mostra o protagonista Lou (Jake Gyllenhaal, de “O Segredo de Brokeback Mountain”, em ótima interpretação)  sendo flagrado por um segurança enquanto roubava uma propriedade. Mesmo tendo em mãos todas as provas do crime, ele dissimula, sorri, diz que está apenas perdido, conversa e engana, preparando seu violento bote mortal. Em segundos, constrói-se a base do personagem: um sujeito simpático, bem falante, mentiroso, de pensamento  rápido, ao mesmo tempo letal e sem escrúpulos. Ou seja, o perfil perfeito de um assassino ou de um executivo de multinacional, o que no fundo é a mesma coisa. Só mudam as armas.

Repare como Lou usa o tempo todo o mesmo vocabulário destes patéticos líderes motivacionais de equipes de vendas. E a todos convence. Escudado por um enigmático sorriso que não lhe sai do rosto, no melhor estilo Coringa do Batman, sua loucura é interior, contida, jamais explodindo suas emoções. Pelo menos não com que está ao seu lado.

‘’Não demora muito para, num lance do acaso, Lou descobrir sua grande vocação: tornar-se um nightcrawler, espécie de repórter/cinegrafista autônomo que sai pela noite, sintonizado no rádio da polícia, à cata de cenas violentas que possam ser vendidas para as emissoras de TV salpicarem seus noticiários matutinos com muito sangue. Um abutre.

Mas diferente dos abutres da natureza, que se alimentam eles próprios das carniças que buscam,  este abutre profissional precisa vender a carniça que encontra, já que na nossa sociedade só importa o que possa ser monetarizado. Só é possível vender sangue e carne podre para quem conheça o seu valor: Nina (René Russo), diretora de uma emissora de TV em Los Angeles, tão ou mais inescrupulosa que o jovem repórter noturno que contrata. Ela se apressa em ensinar a Lou que pagará mais por imagens mais sangrentas, e que ele nem se preocupe em buscar cenas em bairros de negros ou latinos, pois desgraças com pessoas brancas e de classe média ou média/alta rendem mais audiência. Há como desmenti-la? Com certeza não.

Assim fornecedor e comprador de carniça, com todo o apoio da maciça audiência consumidora, passam a trabalhar juntos, com grande sucesso. Mas não sem antes Lou contratar um humilde auxiliar de feições árabes que ele possa explorar violentamente, fechando assim esta bela metáfora cinematográfico do funcionamento do capitalismo.

Um intrigante momento de metalinguagem chama a atenção: ao comandar seu sangrento noticiário matinal, Nina vai dirigindo cuidadosamente os seus âncoras através do ponto eletrônico, dando-lhes instruções do que deve ser falado e repetido, visando uma maior audiência. Todos no switcher (a sala de comando das operações) prestam o máximo de atenção, tensos, quase segurando a respiração. Neste momento percebemos que nós, plateia, estamos tão tensos quanto aqueles personagens. Que por sua vez estão sendo dirigidos por alguém igualmente disposto a segurar sua “audiência”, ou seja, nós. Brilhante.

“O Abutre” marca a estreia na direção de Dan Gilroy, não por acaso roteirista de “Tudo por Dinheiro”, de 2005, entre outros.

Depois de “O Abutre”, seu antecessor “A Síndrome da China”, de 1979, se tornou muito ingênuo.