O ARTISTA EM BUSCA DE SEU PÚBLICO NO ENCANTADOR “OS POBRES DIABOS”.

Por Celso Sabadin.

A eterna luta do artista em busca de seu público se reveste de um caráter ainda mais heroico e até mais nostálgico quando este artista é circense. E quando o público não aparece. Este é o tema principal de “Os Pobres Diabos”, novo filme do genial cearense Rosemberg Cariry, provavelmente o mais brasileiro dos atuais cineastas brasileiros… e que o próprio Brasil não conhece como deveria.

É difícil não se apaixonar por um filme sobre o circo. “O povo gosta de circo”, diz e repete um dos personagens principais. É difícil não se encantar por um filme de Cariry. Imagine então quando Cariry escreve e dirige um filme sobre a vida, alegorizada sob o formato de um circo. O cenário é um Ceará empoeirado, ao lado da turística Acati. O arcabouço é um tal Gran Circo Teatro Americano, decadentemente encantador, continente de uma rica variedade de interessantes tipos humanos. Há a bailarina que finge saber dançar e força um mítico sotaque espanhol: é a “Creuza de Guadalajara, que canta rumbas de Cuba” (Sílvia Buarque), com permisso da licença poética geográfica. Há o bondoso Zeferino (Gero Camilo), que alimenta as expectativas artísticas da pequena enteada Isaura (Letícia Perna), enquanto alimenta também os próprios colegas do circo com o substancioso leite da sua cabra Genoveva, não raramente o único alimento da trupe. Há o homem forte, o quase anão e, claro, o palhaço, o eterno “ladrão de mulher” (no caso, literalmente), sedutoramente transgressor, aqui em mais uma riquíssima caracterização de Chico Diaz. Todos sob o comando do abnegado dono do circo (Everaldo Pontes), otimista o suficiente para montar seu picadeiro longe da cidade, sempre acreditando que “o povo gosta de circo”.

Pode até gostar. Mas como competir com as novelas da TV (que seduzem até a própria Creuza), com os turistas que “só querem saber de praia e mulher”, com a companhia elétrica que ameaça apagar a luz da arte, ou mesmo com a figura oculta de um pastor evangélico que vai “decidir” se sua comunidade deve ou não ir ao espetáculo? É preciso fazer milagres. O mesmo milagre que, sabe-se Deus como (ou seria o Diabo?), permitiu que um gravador e um alto-falante elétricos fossem acionados mesmo depois de não haver mais energia elétrica no circo, salvando a vida de um dos personagens.  Afinal, Deus, o Diabo e Lampião convivem na terra do sol.

Seria injusto destacar o trabalho deste ou daquele ator. Cariry consegue imprimir um impressionante padrão de excelência na totalidade de seu ótimo elenco, formado por Nanego Lira, Sávio Ygor Ramos, Reginaldo Batista Ferro,  Zezita Matos, Sâmia Bittencourt e Georgina de Castro, além dos já citados Letícia Perna, Chico Diaz, Everaldo Pontes, Gero Camilo e Silvia Buarque.

Dois elementos de fundamental importância contribuem de forma decisiva para esta saga circense: a belíssima fotografia de Petrus Cariry e a envolvente trilha sonora original de Hérlon Robson, que resgata a magia e o imaginário de sons que nos remetem aos aspectos nômades e ciganos de todo e qualquer circo.

Para quem não conhece (mas deveria conhecer), Rosemberg Cariry é o nome artístico do “filósofo de formação e cineasta por vocação” (como informa o próprio material de imprensa do filme), Antônio Rosemberg de Moura. Ele escreveu e dirigiu “Folia de Reis” (2013), “Cego Aderaldo – O Cantador e o Mito” (2012), “O Nordeste de Ariano Suassuna – Ceará” (2012), “Siri-Ará” (2008), “Patativa do Assaré, Ave Poesia” (2007), “Cine Tapuia” (2006), “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio” (2002), “Juazeiro – A Nova Jerusalém” (1999), “Corisco e Dadá” (1996), “A Saga do Guerreiro Alumioso” (1993) e “O Caldeirão do Santa Cruz do Deserto” (1986). Rosemberg é também escritor, poeta e pesquisador das culturas populares, com vários livros publicados.

Conhece não? Talvez o público esteja perdendo muito em não ir ao circo.