“O BEIJO NO ASFALTO”: A ATEMPORALIDADE DA HIPOCRISIA BRASILEIRA.

Por Celso Sabadin.

A mídia criando factoides e mentiras para causar sensacionalismo. A polícia, corrupta, mancomunada com a mídia. O preconceito explodindo violento por todos os lados, e as máscaras da hipocrisia da classe média mantendo-se firmes e fortes. Brasil 2019? Não. Este é o Brasil que Nelson Rodrigues relatou, em 1960, em sua peça “O Beijo no Asfalto”. Como tais temas parecem jamais sair da pauta do nosso país, o texto clássico de Nelson já havia sido levado para o cinema em 1965 (com direção de Flavio Tambellini) e 1981 (por Bruno Barreto). Neste conturbado 2018, toda a crueza e a crueldade da peça ganham agora uma terceira versão cinematográfica, desta vez marcando a estreia do conhecido ator Murilo Benício no roteiro e na direção de longas.

Fotografado em belíssimo preto e branco assinado por Walter Carvalho, este novo “O Beijo no Asfalto” traz uma bem-vinda releitura em metalinguagem. Vemos, num primeiro momento, um grupo de atores e atrizes (e que atores e atrizes!) iniciando uma leitura dramática da peça original. Na medida em que o texto avança, o espectador é brindado com a concretização das cenas diante de seus olhos, ora em linguagem cinematográfica, ora em linguagem teatral. Os estilos se convergem e convivem em perfeita harmonia, fluem com emoção e naturalidade e acentuam a dramaticidade da ótima trama, que permanece fiel ao original: um teoricamente inexplicável beijo dado por um desconhecido na boca de um pedestre que acabara de ser atropelado ganha repercussão desproporcional diante da conservadora sociedade carioca dos anos 1960. Estamos num país onde o mínimo indício de uma suposta homossexualidade é muito mais importante que a morte de um homem atropelado.

No elenco, Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos, Débora Falabella, Augusto Madeira, Otávio Müller, Luiza Tiso, Amir Hadad, Stênio Garcia, Raquel Fabri, Marcelo Flores e Arlindo Lopes.

Murilo Benício transforma-se, assim, numa belíssima surpresa.