O COMPLEXO E ENCANTADOR UNIVERSO DE MIYAZAKI RETORNA EM “O MENINO E A GARÇA”.

Por Celso Sabadin.

Já faz muito tempo. Não me recordo exatamente qual foi a primeira animação em longa metragem de Hayao Miyazaki que eu vi. Nem quando. Mas me lembro muito bem das sensações que tive: um total encantamento arrebatador misturado a uma melancólica sensação de ignorância.

O encantamento arrebatador veio da percepção de adentrar em um mundo audiovisual totalmente novo. Garoto culturalmente colonizado pela Disney que fui (e quem não foi?), os traços, os personagens, as cores e estilos de Miyazai propunham um mergulho diferenciando em uma outra realidade da animação cinematográfica.

A melancólica sensação de ignorância nasceu da profundidade do roteiro e da construção dos personagens: “O que será que tudo isso significa, se é que significa?”, eu me perguntava a cada nova referência que explodia na tela. Sentia – mas não compreendia – que saltavam da trama várias camadas de leituras e visões que eu não conseguia decifrar, vitimado pela minha absoluta falta de repertório da cultura oriental.  Algo parecido também me acontece quando vejo David Lynch e Rosenberg Cariry: amo seus filmes mesmo sem compreendê-los muito bem. Ou talvez exatamente por causa disso.

Ao ver “O Menino e a Garça”, revivi todas estas sensações.  Aos 82 anos, e após se arrepender de sua anunciada aposentadoria, Miyazaki continua em plena forma. Nesta sua 14ª direção de longas (há outros 16 títulos entre curtas e trabalhos para TV), o roteiro (também assinado por ele) inicia-se no pós-Segunda Guerra, momento sempre dos mais icônicos na história de um país que sofreu o genocídio atômico perpetrado pelos EUA. É neste clima de perplexidade, tristeza e reconstrução que o garoto Mahito, após perder sua mãe, se vê obrigado a começar uma nova vida ao lado do pai, quase sempre ausente, e da nova madrasta, que também é sua tia.

Ao mudar-se para o campo, Mahito toma contato com uma torre misteriosa onde um antepassado teria enlouquecido por “excesso de livros”, e com uma garça que será seu guia para mais um dos complexos universos mágicos criados por Miyazaki. Realidades e fantasias vividas em tempos, espaços e metaversos paralelos conduzem a narrativa sempre mágica e simbólica que pontua a obra do cineasta.

Levemente inspirado no romance homônimo de 1937, de Genzaburō Yoshino, “O Menino e a Garça” concorre ao Oscar de Animação, já tendo vencido o Globo de Ouro, o BAFTA, e o New York Film Critics Circle, na mesma categoria.