O CONFLITO HUMANO TRATADO COM PROFUNDIDADE EM “A VIDA DOS OUTROS”

Alemanha Oriental, anos 80. A Stasi, polícia secreta a serviço dos comunistas, se gaba de saber tudo sobre todos. Não há espaço para quem for contra o regime. Qualquer indício de simpatia pelos valores ocidentais pode significar o “desaparecimento” do traidor. Este foi o pano de fundo que o cineasta e roteirista alemão Florian Henckel Von Donnersmarck escolheu para o seu primeiro longa, “A Vida dos Outros”.
Ambicioso, realizou logo na estréia um projeto de quase 140 minutos de duração, e envolvendo reconstituição histórica. Deu certo. O filme recebeu uma enxurrada de prêmios e indicações, entre o Spirit Independent, Locarno, Londres, Copenhague, Los Angeles, Montreal, Varsóvia, Globo de Ouro e outros. Isso sem falar no tão cobiçado Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e no recorde de indicações (onze!) no German Film Awards. Faturou mais de 11 milhões de euros apenas na Alemanha, e outros 11 milhões de dólares nos EUA, país que não lê legendas. Teria custado algo em torno de US$ 2 milhões. Ou seja, sucesso total.
Porém, contrariamente ao que possa parecer, “A Vida dos Outros” não é (apenas) um filme político sobre os desmandos de um regime ditatorial. Mais que isso, ele aborda profundamente a complexidade das relações humanas. Num primeiro momento, o filme até parece frio, distante. “Alemão demais”, eu diria, já destilando uma certa dose de preconceito. Porém, aos poucos se percebe que esta suposta “frieza” narrativa é um dos grandes méritos da direção de Von Donnersmarck. Na realidade, o cineasta utiliza os primeiros minutos da ação para jogar o espectador no sombrio mundo da ausência total de liberdade. Tudo é escuro, mecânico, quase sem sentimentos. Deste universo cinzento e metálico emerge a depressiva figura do capitão Gerd (Ulrich Muehe, de “Violência Gratuita”, recentemente falecido), agente especial da polícia secreta da Alemanha Oriental que tem como única finalidade na vida servir cegamente ao seu totalitário país. Seu rosto é impassível, sua fala é monocórdica, seu apartamento é de uma tristeza estéril. Gerd desafoga as suas tensões contratando uma prostituta tão mecânica e tão friamente profissional quanto ele.
Do outro lado da vida está Georg (Sebastian Koch, de “Amém”), um homem das artes, diretor de teatro apaixonado pela namorada Christa (Martina Gedek), e que tem a rara habilidade de se equilibrar habilmente entre a liberdade dos palcos e a opressão da ditadura. O que une estes homens tão diferentes e de nomes tão parecidos é um punhado de escutas clandestinas instaladas no apartamento de Georg. Quanto mais Gerd ouve e percebe a vida de Georg, mais ele mergulha num inesperado mar de sensações antes impensadas. Enquanto Georg age como instrumento modificador de Gerd, mesmo sem ter a mínima consciência disso. Os fios que unem microfones e fones de ouvido desta escuta tão vil acabam funcionando com um cordão umbilical entre os personagens.
E isto é apenas uma das formas de se ler a história. Ainda há o segredo de Christa para ser esclarecido (sim, ela tem um), e todo o desenrolar histórico de um filme cheio de reviravoltas que se estenderá até… bem, é melhor não falar mais nada.
“A Vida dos Outros” marca uma estréia excelente de um cineasta grande: Florian Henckel Von Donnersmarck, além de um nome gigantesco, tem mais de 2 metros de altura. A julgar por este seu primeiro filme, também será um grande cineasta.