“O FIM DO MUNDO”. EM 1931, E HOJE.
Por Celso Sabadin.
Heráclito disse que ninguém nunca toma banho duas vezes no mesmo rio, porque as águas passam, e quando alguém for tomar um segundo banho, o rio já é outro. Penso o mesmo sobre cinema: nunca ninguém vê o mesmo filme duas vezes, porque todos nós mudamos com o tempo, e se alguém assistir a um filme uma segunda vez, esse alguém também já não é mais o mesmo.
Bonito, né?
Notei isso de uma maneira muito forte, recentemente, ao rever um filme que eu não via há muito tempo: a ficção científica “O Fim do Mundo”, de 1931, dirigida e interpretada pelo grande Abel Gance, o mesmo diretor do superlativo “Napoleão”, de 1927. A origem do longa é um livro publicado em 1894 pelo astrônomo, escritor e pesquisador psíquico francês Camille Flamarion (1842-1925).
“O Fim do Mundo”, se inicia de forma surpreendente, mostrando a crucificação de Jesus Cristo. Quando a gente começa a pensar que tipo de ligação o roteiro fará entre Cristo e uma ficção científica, vem a surpresa: na verdade, trata-se de uma representação de teatro amador, na qual o próprio Gance interpreta Jesus, e Colette Darfeuil vive Maria Madalena.
Terminado o teatro, os personagens do filme começam a se delinear. Gance é Jean, um poeta e escritor deprimido e amargurado pela falta de entendimento e compreensão da Humanidade. Colette vive Geneviève, garota rica e apaixonada por Jean. Mas o poeta, muito pobre, não se vê digno de se casar com ela. Como no fundo o que Geneviève parece querer mesmo é se casar com qualquer homem que a tire da casa do pai possessivo, ela inicia um namoro com o também rico Scomburg (Samson Fainsilber). Milionário e mau caráter (com o perdão da redundância), Schomburg estupra Geneviève. Obviamente a cena não é explícita, mas é muito bem dirigida.
Como desgraça pouca é bobagem, praticamente ao mesmo tempo, Jean toma uma forte pedrada na cabeça, durante uma briga de rua. Seu médico diz que muito em breve ele enlouquecerá, por causa do ferimento.
Mas no início do texto eu não falei que “O Fim do Mundo” era uma ficção científica? Vai vendo. Enquanto todo esse drama acontece, o astrônomo e cientista Martial (Victor Francen), que é irmão de Jean, descobre que em alguns meses um cometa irá se chocar contra a Terra, matando quase todo mundo (esse “todo mundo”, no caso, é literal).
Os dois irmãos e Geneviève, então, fazem um pacto: Jean, prestes a enlouquecer, entrega a Martial os vários e vários volumes que ele escreveu sobre coisas que acontecerão no futuro. Em troca, Martial se compromete a fazer uma grande reunião com os principais líderes da Terra, e também a se casar com Geneviève. Assim, Geneviève “veria” Jean através dos olhos do irmão do seu amado.
Aqui eu preciso fazer uma pausa. Tudo ficou um pouco sem sentido nesta cena. Como Jean sabe o que vai acontecer no futuro? Por que eles fariam tudo isso se o mundo está prestes a se acabar?
A questão é que “O Fim do Mundo”, na concepção de Abel Gance, era para ter mais de três horas de duração. Os produtores não gostaram da ideia e resolveram cortar as asinhas de Gance, e junto com elas uma boa minutagem do longa.
Assim, informações mais ou menos desencontradas afirmam que, como o filme não fez sucesso, ele foi picotado, tendo existido uma versão de 95 minutos (a que eu vi, num site de compartilhamento democrático de conteúdo audiovisual para finalidades acadêmicas e pedagógicas); outra de 54 minutos distribuída com outro nome (“Paris After Dark”) só no mercado estadunidense, três anos depois do lançamento original; uma remontagem britânica de 105 minutos assinada por um roteirista que sequer consta nos créditos do original; além da própria versão que só existiu na mente do seu diretor. Não é difícil, assim, compreender que algumas cenas e diálogos parecem meio soltos demais.
Embora com quase um século de existência, “O Fim do Mundo” levanta questões que remetem diretamente à nossa contemporaneidade. Talvez a primeira seja a lembrança de uma frase que se tornou muito popular nas redes sociais, como forma de externar a descrença com a nossa realidade: a famosa “Vem, meteoro!”. No caso do filme, é um cometa. E ele vem mesmo.
Também chama a atenção a atitude (no filme) de uma boa parte da população rica do planeta: eles não acreditam nos estudos de Martial – comprovados pela comunidade científica – e afirmam que não haverá destruição. Sim, são os negacionistas de 1931. Sabemos bem como funciona.
A questão do armamento é fundamental na trama. Martial lamenta ter recebido, assim que foi indicado ao Nobel, propostas de 10 países para desenvolver projetos. Todos eles para a construção de armas. Tais fabricantes de armamentos estão umbilicalmente ligados aos agentes das bolsas de valores, que não abrem mão de especular sobre seus lucros e perdas até o último minuto antes da destruição global. Uma ganância maior que o fim do mundo. Mesmo porque armamentos e especulação monetária eram temas dos mais palpitantes naquele 1931, apenas 13 anos após a I Guerra (oito antes da próxima) e dois anos depois da quebra da bolsa de Nova York de 1929.
Não parece ter mudado muita coisa.
E tem mais: ao saber que quase toda a população mundial perecerá em breve, Martial não mede esforços para a criação de uma aliança internacional de paz e compreensão entre os líderes governantes. Este é outro ponto que também fica um pouco perdido no filme, provavelmente pelos cortes feitos, como já vimos. Afinal, por que uma aliança se vai tudo se acabar?
A explicação, digamos, mais plausível, seria de caráter bíblico/religioso, uma espécie de arrependimento mundial diante do apocalipse, em busca do perdão. O que inclusive justificaria a já citada abertura cristã do longa.
Mas, independente das questões da alma, é interessante notar como, a princípio, se fala em entendimento mundial, mas o que é realmente verbalizado no filme é uma união “europeia”. Colonialismo até a medula.
Rever “O Fim do Mundo” foi uma “experiência imersiva”, como não se falava em 1931, e se fala hoje De fato, o bom velho Heráclito tinha razão.
Ah, antes que perguntem, não sei se o filme está disponível nestas plataformas legalizadas que estão lutando contra a regulamentação dos streamings e assassinado os produtores brasileiros. Elas que lutem pra divulgar.