O GRITO PRESO NA GARGANTA DE “MADALENA”.

Por Celso Sabadin.
Nunca havia visto emas no cinema brasileiro. Há mais de 40 anos acompanho o cinema brasileiro e nunca havia visto emas na tela. Ema, sabe? Aquela ave grandona que parece avestruz. Essa mesmo. Sabia que havia emas no Rio Grande do Sul, porque vi, em algum momento da minha infância, alguma referência a isso num gibi do Zé Carioca. E, mais recentemente, fiquei sabendo das emas no Palácio da Alvorada, em mais um capítulo constrangedor da nossa história recente. Mas, nas telas, nunca: só no zoológico.
O filme “Madalena”, que estreia nesta quinta – 09/12 nos cinemas – abre com belas e expressivas cenas de emas em vastos campos de soja. Logo nas primeiras tomadas, pensei: “Nunca vi nenhum filme deste diretor, mas o cara é bom!”. Dá pra perceber em instantes: as emas, impávidas, de olhares penetrantes e gestos que parecem coreografados, surgem em um só tempo integradas à beleza e ao gigantismo das plantações, e dissociadas do trânsito que passa ao longe. O silêncio é misterioso. O aproveitamento cênico e cinemático da situação é de cineasta grande.
Por causa do Zé Carioca, penso que o filme se passa no Rio Grande do Sul, mas logo se revela que é em Mato Grosso do Sul que, no fundo, não deixa de ser uma colônia gaúcha. É neste ambiente sórdido e podre comandado pelo não menos sórdido nem menos podre agronegócio (que a Globo diz que é pop) que se desenvolve a trama de “Madalena”.
Vemos um jovem herdeiro de uma fazenda de soja que é tão a favor de substâncias químicas ilegais que as injeta em seu próprio corpo. A mãe dele concorre ao Senado. Vemos uma garota trabalhadora numa casa noturna que enfrenta com valentia o agroboy que quer estacionar em local proibido. A mãe dela costura pra fora. Ouvimos o rádio falar de misteriosos assassinatos. Ouvimos todos os tipos de letras misóginas nas canções da trilha musical do filme. Mas… e Madalena? Onde está Madalena?
O longa se desenvolve numa pegada de quebra-cabeças, onde as peças vão sendo cuidadosamente apresentadas aos poucos, misturando drama, mistério e horror: o horror estrutural da sociedade brasileira machista e homofóbica. O grande quadro final só será formado na mente do público, após o término da projeção. E certamente permanecerá por um bom tempo.
Quanto mais avança a narrativa, mas se cristaliza a impressão inicial da qualidade da direção e do roteiro (assinado pelo próprio diretor, estreante em longas, mais Thiago Gallego, Thiago Ortman, Tiago Coelho), em seus vários aspectos: o cuidado com os enquadramentos, a precisão dos movimentos de câmera, a hipocrisia impregnada em cada sequência, o silêncio cúmplice, o grito que não sai, a violência que – pior que explodir – implode.
Dois momentos já podem ser considerados antológicos: a gravação de um bizarro clipe de música sertaneja, e a abertura das “garras” de uma máquina pulverizadora de agrotóxicos.
Ah, e as emas, claro, as solenes e expressivas emas que me fizeram pensar quanta coisa o cinema brasileiro ainda não mostrou e tem pra mostrar.
No elenco, Natália Mazarim, Rafael de Bona, Pamella Yule, Chloe Milan, Mariane Cáceres, Nádja Mitidiero, Joana Castro, Edilton Ramos, Maria Leite, Antonio Salvador e Lucas Miralles, vários deles arregimentados na região de Dourados, onde o filme foi feito.
Com estreia mundial no 50º Festival Internacional de Cinema de Roterdão (Holanda), o filme já foi selecionado para mais de 30 festivais internacionais e conquistou oito prêmios. Destaca-se a seleção para o Festival Internacional de San Sebastian (Espanha), Festival de Biarritz (França) e Festival de Cinema de Lima Pucp (Peru), neste último sendo consagrado com três prêmios: Melhor Filme, Melhor Interpretação com o prêmio Gio aos filmes LGTBIQ+ de Crônicas de Diversidade) para Pamella Yulle e Melhor Direção também com com prêmio Gio. No Brasil, o filme teve sua estreia na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e foi exibido no Festival Mix Brasil de Cultura e Diversidade conquistando o Prêmio de Melhor Direção.