“O LIVRO DE ELI”: MISTURA QUE FUNCIONA.

Impossível assistir ao belo drama apocalíptico “O Livro de Eli” sem que dezenas de referências comparativas invadam nossas mentes: de “Mad Max” a “Era uma Vez no Oeste”, de “O Planeta dos Macacos” (o primeiro) a “Eu Sou a Lenda”, ou mesmo “O Último Homem Sobre a Terra”. E tantos outros.

A boa notícia é que a junção destes retalhos cinematográficos resulta numa obra empolgante que se acompanha com interesse até o final. Por que não? Colchas de patchwork também podem ser quentes e bonitas.

Tudo começa sem maiores explicações, mostrando um mundo arrasado e o fim da civilização como a conhecemos. No melhor estilo western, um viajante solitário (Denzel Washington) ruma obstinadamente… para o oeste, é claro, ícone da colonização e da ilusão de novos tempos da cultura norte-americana. Não esquecer que Hollywood fica no oeste.

Como os recursos naturais são praticamente inexistentes, um gole d` água pode valer a própria vida (como em “Mad Max 2”) e qualquer lencinho umedecido pode proporcionar um belo banho… e um belo merchandising do KFC.

Em seu árido caminho, o viajante solitário (que muito mais tarde saberemos que se chama Eli) é obrigado a enfrentar gangues de marginais saqueadores assassinos, proporcionando cenas de extrema violência gráfica e explícita que bebem na fonte da estética dos quadrinhos. Não por acaso: o filme é dirigido pelos irmãos Albert e Allen Hughes, os mesmos que dirigiram “Do Inferno”, adaptação da graphic novel de Alan Moore. Aqui, a história é de Gary Whitta, estreante em cinema.

Bem, faltam o vilão e a mocinha. Eles logo aparecerão, mais precisamente numa vila de horrores governada com mão de ferro por Carnegie (Gary Oldman), que mantém como escravas a bela Claudia (Jennifer Beals, ícone dos anos 80 com “Flashdance”) e a filha dela Solara (a ucraniana Mila Kunis, de “That 70´s Show” e “Family Guy”).

Chama a atenção o fato de Carnegie estar desesperadamente à procura não de uma arma, nem de água, mas sim de um livro. Um livro que – acredita ele – lhe dará grandes poderes.

Desnecessário dizer – o título do filme já faz isso por nós – que Eli tem o tal livro. E está armado o conflito: mocinho, mocinha, vilão (e seu séquito) se lançam num road movie árido, áspero e violento mas que tem conteúdo suficiente para ir além, bem além, de um mero filme de perseguição.

Emoldurado por uma bela fotografia granulada em tons de terra e areia que ressaltam a aridez e a desolação daquilo em que a Terra se transformou, “O Livro de Eli” também é pródigo em referências e, digamos, brincadeiras cinematográficas. Um dos personagens, por exemplo, assobia o tema musical composto por Ennio Morricone para “Era uma Vez na América”, numa clara homenagem ao diretor Sergio Leone, mestre dos faroestes italianos, cujo estilo está bem estampado em todo o filme.

Em outra cena, Eli e Solara conseguem guarida de um supostamente inofensivo casal de velhinhos batizados singelamente como Martha e George. São nomes simbólicos da cultura norte-americana que remetem a Martha e George Washington, como que simbolizando no que os EUA se transformaram.

E não deixa ser irônica a presença, neste futuro detonado, do ator Malcolm McDowell, que nos anos 70 foi um dos maiores representantes dos horrores do “futuro próximo” ao estrelar o clássico “Laranja Mecânica”.

Cinefilia a parte, “O Livro de Eli” aborda uma sociedade em profunda transformação, onde a ignorância e a violência são moeda corrente, e onde os poucos alfabetizados que ainda restam sobre o planeta buscam num livro – boa metáfora para sabedoria – a chave para o poder e dominação (para o lado do Mal) ou para a libertação e o conhecimento (para o lado do Bem). Sim: talvez a história do filme não seja tão “ficção científica” assim.

A lamentar apenas os minutos finais, onde o roteiro descamba para aquela obsessão típica do cinema americano em tentar explicar tudo, fechar tudo, aparar todas as arestas, e se certificar que o público saia da sala sem ter muito o que pensar. Se terminasse uns 5 minutinhos antes, “O Livro de Eli” seria bem melhor, mas é um trabalho que merece ser conferido.