“O ÚLTIMO METRÔ”, AFINAL, NÃO ERA O ÚLTIMO.

Por Celso Sabadin.
 
“O Último Metrô” foi lançado na França em setembro de 1980. Deve ter chegado ao Brasil no ano seguinte, não sei. Lembro de tê-lo visto no Cine Belas Artes e de ter gostado. Lembro também que em algum lugar foi publicada, na época, uma matéria sobre o filme chamada “O Último Truffaut”, e eu achei o título divertido. Lendo agora a biografia de Truffaut que Serge Toubiana publicou no século passado (o livro estava na minha interminável pilha de coisas para ler), me deu vontade de rever o filme.
 
E não deu outra: assim como todo e qualquer material sobre fascismo, nazismo e ignorância produzido no passado, “O Último Metrô” também atualizou-se e potencializou seu alcance nestes tempos retrógrados que vivemos hoje. Impossível ver a obra e não se sentir – agora – dentro dela. O país dividido pela ocupação nazista, a truculência dos poderosos, o dedodurismo, o colaboracionismo, a estupidez do poder tomado por meios ilícitos desejar sua validação através do controle das artes, o medo, a covardia do não posicionamento, tudo está lá. E, ao mesmo tempo aqui, o que torna o longa – pelo menos para mim – muito mais doloroso hoje que naqueles anos 1980.
 
“O Último Metrô” trabalha com muito talento as questões da divisão e da dubiedade. A começar da sua própria estética, que durante toda a narrativa se divide entre cinema e teatro, coerente com a sua premissa de mostrar, em filme, a montagem de um espetáculo teatral. Praticamente todos os personagens caminham perigosamente sobre a corda bamba da divisão. Marion (Catherine Deneuve) se vê dividida entre a lealdade ao marido judeu Lucas (Heinz Bennnet) escondido no porão (outra divisão) e a chegada do novo ator Bernard (Gèrard Depardieu), que por sua vez se divide entre a paixão que nutre por Marion e o tesão que desenvolve pela inacessível figurinista Arlette (Andréa Ferréol) que – se saberá mais tarde – é homossexual e, portanto, obrigada a se esconder (viver uma vida dividida) de um regime que considerava a homossexualidade um crime. Assim como o diretor da peça, Jean-Loup (Jean Poiret), divide-se não apenas para esconder sua homossexualidade, como também para tentar manter rodando a complicada engrenagem que envolve o funcionamento de um teatro, cujo dono é um judeu de esquerda, encravado numa cidade dominada por um governo de direita. É a Jean-Loup que cabe a ingrata tarefa de fazer com que uma peça escrita por Lucas seja aplaudida pelo poderoso jornalista antissemita de extrema direita Daxiat (Jean-Lois Richard) este, por sua vez, divido entre a admiração que nutre pelas artes cênicas e o ódio que destila contra quem as produz. Não por acaso, no final do filme (lá vem um pequeno spoiler), Jean-Loup é preso, solto e novamente preso ao final da guerra: “a primeira prisão, por causa de seus contatos, e a segunda por causa de seus contatos”, conforme o texto do próprio filme.
 
É interessante notar, na crítica que Daxiat escreverá sobre a peça, sua preocupação obsessiva e doentia em relacioná-la, em diversos níveis, com algum tipo de judaísmo que ela pode apresentar, a mesma preocupação obsessiva e doentia que o atual presidente brasileiro tem em relacionar qualquer tema com um suposto comunismo que ele – e somente ele – julga existir.
 
Paris é aqui. Pelo menos a ocupada, fato que a perenidade das obras de artes que se tornam clássicas – caso de “O Último Metrô” – só fazem comprovar através dos tempos. Infelizmente, o trem da truculência nazista que passou na Segunda Guerra Mundial estava longe de ser o último.