OBSESSÕES AMERICANAS MOTIVAM CLÁSSICO DO NOIR “MORTALMENTE PERIGOSA”, EM DVD.

por Celso Sabadin.

Dois fortes traços da alma estadunidense podem ser observados claramente em “Mortalmente Perigosa”, de 1950,  filme que faz parte do box “Cinema Noir 2″, lançado pela Versátil: o fascínio pelas armas de fogo e a obsessão consumista. Unidas, estas duas características proporcionam uma química violenta e mortal, conforme mostra o filme. Num primeiro momento, o roteiro prioriza a origem de Barton (John Dall, recém-saído do clássico “Festim Diabólico”), rapaz simples que tem um inexplicável fascínio por armas, mas de uma bondade que o impede de atirar em qualquer ser vivo. Num espetáculo de circo, ele se apaixona por Annie (Peggy Cummings), não por acaso uma atiradora profissional que faz exibições de tiro ao alvo com armas de fogo. Repare como os revólveres da personagem entram em cena antes mesmo da própria protagonista, supervalorizando o fetiche de Barton.

A atração entre ambos é inevitável, porém suas motivações são conflitantes. Barton projeta sua paixão/fetiche pelas armas na bela mulher que as maneja como ninguém, enquanto Annie se apaixona pela possibilidade que o ingênuo Barton potencialmente lhe oferece de transformar o casal numa ótima fonte de dinheiro. Ela não esconde que tem um forte desejo por tudo que o dinheiro possa comprar.  E ele aceita tudo para se manter atado à manipuladora de sua maior obsessão, incluindo enveredar por uma vida de crimes.

Em determinado momento do filme, ambos combinam de realizar um grande assalto do qual fugiriam separadamente, assim se mantendo durante alguns meses, para amenizar as aparências e consolidar a fuga. O crime dá certo, mas, numa cena das mais significativas, eles não conseguem se separar, momento que se configura como o ponto crucial das trajetórias dos protagonistas, que selam assim definitivamente a simbiose destrutiva que marca a relação e que encaminhará a trama para o inevitável final trágico. Afinal, o Código Hays da censura norte-americana não permitia jamais que um filme terminasse sem que os criminosos fossem devidamente punidos, mesmo sendo o cinema noir o que melhor soube explorar a fascinante zona nebulosa e pouco definida que separa o bem do mal.

Tecnicamente, “Mortalmente Perigosa” traz uma cena que hoje pode até passar despercebida para os olhares já bombardeados por planos-sequências e facilidades tecnológicas, mas que na época chamou a atenção. Trata-se do assalto ao banco, onde Barton e Annie são enquadrados por uma câmera colocada no banco de trás do carro que os conduzirá ao crime. Sem cortes e sem nunca a câmera sair do carro, eles procuram um lugar para estacionar, estacionam, Barton sai do carro e dirige-se ao banco, enquanto Annie tenta distrair um policial que se encontra na calçada. Barton sai correndo do banco carregando o dinheiro (o assalto em si nunca é mostrado), Annie nocauteia o policial, os criminosos voltam para o carro que dispara em fuga. Tudo num único plano. Pode parecer simples hoje, mas é bom lembrar do tamanho das câmeras e dos microfones de 1949.

Os créditos informam que “Mortalmente Perigosa” foi roteirizado por MacKinlay Kantor e Millard Kaufman, o que é parcialmente verdade. Kantor escreveu o conto, inspirado em fatos, que foi publicado no “The Saturday Evening Post”. E de fato colaborou no roteiro. Só muito tempo depois, nos anos 90 foi revelado que Kaufman apenas emprestou seu nome para o verdadeiro corroteirista, Dalton Trumbo, que estava impedido de trabalhar por ter sido acusado de comunista, naquela infame era do Macartismo. A direção foi de Joseph L. Lewis, que fez cerca de 40 longas entre 1937 e 1958, migrando depois para a direção de seriados de TV.

“Mortalmente Perigosa” foi produzido pela pequena Kings Brothers, dos irmãos Frank e Maurice King, empresa que atuou no mercado norte-americano entre 1941 e 1969, e conhecida no Brasil nos anos 60 pelo seriado de televisão “Maya”. O título original do filme “Gun Crazy”, cria a sensação acústica de “gone crazy”, algo como “enlouquecendo”. Não parece ser mera coincidência.