OS FILHOS PERDIDOS DOS PAIS DISFUNCIONAIS DE “AS MONTANHAS SE SEPARAM” E “INCOMPREENDIDA”.

 Por Celso Sabadin.

Dizem que coincidências não existem, mas coincidentemente ou não assisti neste final de semanas a dois filmes muito diferentes entre si, mas que mesmo assim acabam tratando de um tema em comum: como as atitudes dos pais determinam – ou não – as trajetórias de seus filhos. O primeiro é “As Montanhas se Separam” e o segundo é “Incompreendida”.

Coproduzido entre China, Japão e França, “As Montanhas se Separam” tem roteiro e direção de Zhangke Jia, o mesmo dos ótimos “Em Busca da Vida” e “Um Toque de Pecado”. Neste seu novo trabalho, Jia mantém seu estilo intimista de desenhar lenta e seguramente os caminhos que pretende seguir nas tramas que desenvolve. Num primeiro momento, ambientado na virada do século 20, centra-se na disputa de dois amigos – um rico e o outro pobre – pela mesma mulher. Mergulha no melodrama, alicerça com firmeza seus personagens, e aproveita o momento histórico do fim do domínio britânico sobre Hong Kong para estabelecer paralelos de mudanças mundiais, sociais e pessoais.  Como sempre acontece em seus filmes, Jia aqui também continua destilando boas doses de estranheza aos apreciadores do cinema ocidental convencional, para o deleite de quem prefere um tipo diferenciado de narrativa que não se importa com personagens que – como na vida – desaparecem no decorrer da trama. Nem com um avião caindo de repente, abrindo espaço para um vasto leque de interpretações.

A última parte do filme se detém na análise de um jovem personagem – significativamente rebatizado como Dólar – filho de um casamento desfeito entre um pai embriagado pelo poder e uma mãe ausente pelas circunstâncias da vida. Retirado de sua terra natal e carregado por seu pai para o Ocidente, Dólar é tão alienado de suas raízes que afirma ser um bebê de proveta. E tão distanciado do próprio pai que só consegue travar com ele algum tipo de comunicação com o auxílio de uma intérprete. Um pai que, desencantado com o ocidente, briga com o Google Translator e reclama da liberdade que agora tem, que lhe permite comprar uma arma, mas não lhe concede o direito de atirar em quem quiser.

É Dólar quem dialoga diretamente com Aria, a personagem principal da produção ítalo-franco-britânca “Incompreendida”. Dirigido por Asia Argento, o filme é bem mais direto e, digamos, mais ocidental que o trabalho de Jia. Com pegada autobiográfica, mostra uma adolescente italiana (Giulia Salerno, um achado) que durante os anos 80 é obrigada a desenvolver um inacreditável jogo de cintura para não sucumbir à loucura do mundo que a rodeia. De um pai famoso a uma mãe que saiu de Woodstock a pé e ainda não voltou, passando por uma professora autoritária e violenta, todo o entorno da garota é povoado por personagens desequilibrados sempre dispostos a rechaçá-la. Ou pelo menos é esta a visão que a menina expõe em sua narrativa coloridíssima e autopiedosa que consegue extrair ternura e bom humor em meio à insanidade. Não é nada difícil traçar um paralelo entre o personagem do filme de Asia e a vida real da diretora Aria, filha do famoso cineasta Dario Argento e da atriz Daria Nicoldi.

Se Dólar, do filme chinês, busca o rompimento com o pai autocrático e projeta a mãe desconhecida na namorada mais velha que lhe empresta segurança, visando assim uma reconexão com o passado perdido, a jovem Asia, cujo único apoio afetivo é um gato de rua, age ela própria como um animalzinho perdido, vagando de porta em porta à procura de algum afago. Dólar deseja o reencontro com a mãe, mas tem medo, e o filme se resolve e se fecha com uma boa dose do conhecido misticismo oriental. Enquanto Asia, quebrando a quarta parede e olhando diretamente para o público, pede que não lhe tenhamos pena, mas sim que a vejamos com mais simpatia, num desfecho latinamente emocional.

Os dois filmes terminam abrindo novas possibilidades e redenções para seus sofridos protagonistas adolescentes. Cada um ao seu estilo, cada um à sua maneira, mas ambos lançando olhares e perspectivas para estas novas gerações que tanto padecem com os erros de pais disfuncionais. Seja na China, na Itália ou aqui na esquina. Mesmo porque, como dizem, pais e mães só mudam de endereço.