“OS MISERÁVEIS”, UM TIPO DE BACURAU FRANCÊS.  

Por Celso Sabadin.

Num primeiro instante, “Os Miseráveis” pode até parecer um daqueles filmes que os franceses fazem na mesma linha do cinema comercial estadunidense para faturar um pouco mais nas bilheterias. Vemos a recorrente equipe de policiais durões, a ronda nos perigosos bairros periféricos dominados por minorias oprimidas, o policial novato em conflito com os mais experientes, a corrupção, e assim por diante. Mas esta falsa impressão logo será desmanchada: afinal, trata-se de um filme feito num país historicamente protagonista de revoluções e revoltas populares, e que toma seu título emprestado de Victor Hugo. Não será pouca coisa.

O início é brilhante. Logo após a França se tornar bicampeã mundial de futebol, em 2018, cidadãos de diversas classes sociais se reúnem em Paris em empolgadas comemorações públicas cantando o hino nacional e saudando o azul, o vermelho e o branco. Cria-se momentaneamente a ilusão de um país unido. O que logo se perceberá ser uma enorme falácia.

O que se vê a seguir é o gigantesco fosso social que separa a Paris da Torre Eiffel e do Arco do Triunfo da Paris da periferia. Uma unidade policial denominada “Anticrime” monitora a região, onde não faltam lideranças negras em conflito com as muçulmanas, poderes paralelos, precariedade das condições de vida e outras incuráveis chagas sociais. A presença da polícia branca, desequilibrada e despreparada só colocará mais tensão neste verdadeiro barril de pólvora sempre prestes a explodir. Uma explosão, porém, que certamente surpreenderá nossa percepção terceiro-mundista sempre acostumada com finais bem diferentes daquele que o filme mostrará.

“Os Miseráveis” empatou com “Bacurau” no Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado. Não por acaso: ambos têm na resistência – e, por que não, na revanche – os seus temas principais. A produção francesa marca também a surpreendente e vigorosa estreia na direção de longas de Ladj Ly, nascido em Mali, ele próprio morador da região retratada no filme, e que colocou em seu roteiro (co-assinado pelo chileno Giordano Gederlini) suas experiências pessoais de exclusão e violência.

Um fortíssimo tapa na cara social, antropológico e político.