“PAPICHA”: NEOCOLONIALISTA E COMPETENTE.

Por Celso Sabadin.
Seguindo uma forte e perigosa tendência que tem se observado ultimamente no mercado internacional de cinema (incluindo os chamados filmes de arte e de festivais), entra em cartaz no Brasil nesta quinta-feira (31/10) mais uma coprodução neocolonialista claramente preconceituosa contra a cultura árabe: “Papicha”.
 
O longa segue a fórmula já observada aqui em “Clash”, “Degradé”, “Meu Querido Filho”, “Les Bienheureux” (este inédito no Brasil) e vários outros. Qual seja: arma-se uma coprodução entre um país europeu (quase sempre França, Bélgica ou ambos) e outro de cultura árabe, deixa-se o roteiro e a direção a cargo de um cineasta de origem árabe, enquanto a produção propriamente dita fica a cargo dos europeus. Desenvolve-se então uma história maniqueísta na qual os personagens que representam a cultura árabe são retratados como fanáticos assassinos, enquanto os personagens representantes da cultura europeia são mostrados como humanistas e progressistas. Dá-se ao filme um estilo de direção tido como artístico, sintonizado com as opções estéticas e narrativas de grande acolhimento junto a importantes festivais internacionais e, voilá: temos um filme racista, produzido pela Europa e “avalizado” por um diretor árabe e pela aura imaculada dos festivais, o que o torna menos suscetível a críticas e denúncias.
 
Assim é “Papicha”. Selecionado para a Mostra Un Certain Regard, de Cannes, o longa (que se diz levemente inspirado em casos reais) é ambientado na instável e perigosa Argélia dos anos 1990, lugar onde a jovem e libertária estudante Nedjma (Lyna Khoudri, ótima) sonha em realizar um desfile de moda em sua universidade. Ao lado de suas colegas igualmente amantes da liberdade e do estilo europeu de vida, Nedjma desenha vestidos, escolhe tecidos, costura. Elas sofrem, porém, a fúria de grupos extremistas religiosos que não hesitam sequer em cometer covardes assassinatos para tentar impor seus pontos de vista fundamentalistas.
 
Ninguém em sã consciência negaria a existência de tal violência fundamentalista, mas o grande problema do filme é sua visão bipolarizada, sem nuances, onde só existem dois tipos de pessoas: as lindas, esclarecidas, inteligentes e sensatas, sintonizadas com a cultura ocidental; e as selvagens, assassinas e truculentas relacionadas com a cultura árabe. O roteiro não abre nenhuma janela a nenhuma relativização.
O claro viés preconceituoso de “Papicha” se potencializa ainda mais graças à inegável competência cinematográfica da obra, bem realizada em todos os seus quesitos técnicos e narrativos, caprichosamente produzida e otimamente interpretada. Tal tipo de neocolonialismo cinematográfica torna-se ainda mais perigoso quando bem realizado.
 
O filme – escolhido pela Argélia para representar o país no Oscar – marca a estreia na direção e roteiro de longas ficcionais da russa de origem argelina Mounia Meddour, esposa do diretor francês Xavier Gens.