“PARA O OUTRO LADO” E “BODY”: DUAS AULAS PARA O CINEMA BRASILEIRO.

Por Celso Sabadin

Dois filmes que chegam praticamente juntos ao circuito exibidor brasileiro dão verdadeiras aulas ao nosso cinema ao abordar o tema da espiritualidade. Um, já em cartaz, é a produção nipo-francesa “Para o Outro Lado”; o segundo é o polonês “Body”, previsto para estrear por aqui em 17 de dezembro. Ambos precisam – e muito – serem vistos pelos produtores brasileiros engajados na temática espírita.

Dirigido por Kiyoshi Kurosawa (sem parentesco com o mestre Akira), “Para o Outro Lado” começa mostrando Mizuki (Eri Fukatsu), uma professora de piano que logo na segunda cena do filme leva uma serena reprimenda da mãe de uma aluna, dizendo que sua filha parece não ter aprendido nada nos últimos anos. Ato contínuo, Mizuki assume uma tristonha expressão de resignação, como que assumindo sua falha ou incompetência. Logo em seguida, no silêncio solitário de sua casa, Mizuki recebe a visita  inesperada de Yusuke (Tadanobu Asano). Em diálogos que misturam estranhamento e afeto, logo se descobre que ambos são casados, que o marido estava desaparecido há três anos… e que ele está morto. Yusuke convida então Mizuke para uma jornada na qual ele promete lhe mostrar lugares maravilhosos. Onde? “Por aqui mesmo”, responde o marido morto. Não, ninguém caminhará sobre nuvens, nem transpassará portais mágicos, muito menos se vestirá de branco luminoso e flutuará por paraísos angelicais ao som de Enya. O passeio será de trem e ônibus.

Kurosawa dirige com muita sobriedade, com seu tripé solidamente fincado no chão e suas lentes apontadas para uma equilibrada emotividade adulta. O máximo que se permite são alguns efeitos de neblina, a sombra de um pássaro que perpassa eventualmente pelos personagens, e a utilização de uma surpreendente trilha sonora que ganha uma dimensão ímpar ao se descolar daquilo que se esperaria de uma produção convencional.

A jornada de Yusuke e Mizuke cumpre então três etapas. Na primeira, Yusuke se reencontra com um velho senhor que distribui jornais com sua pequena moto, na segunda o casal se hospeda na casa de um dono de restaurante (momento onde a cena inicial sobre o piano passa a fazer mais sentido), e na terceira Yusuke retorna a um lugarejo onde é recebido como herói, e faz palestras desconcertantes sobre a imensidão do tempo e do espaço e a consequente insignificância humana. Certamente a vastíssima cultura oriental deve ter centenas de interpretações para tais metáforas. Afinal, como afirmou o próprio diretor de “Para o Outro Lado”, “em japonês existe um verbo para o ato de acompanhar uma pessoa que está morrendo, ou para cuidar de uma pessoa até a sua morte. Ele é chamado mitoru. Ainda não se sabe se é possível traduzir todas as sutilezas dessa palavra em uma língua estrangeira”. Resignado à minha superficialidade ocidental, limitei-me a apenas degustar desta belíssima jornada.

Saio do filme com uma sensação igual à que eu sempre tenho após ver os desenhos de Hayao Miyazaki: a de ter tomado contato com um gigantesco universo de imensas riquezas interpretativas orientais, e de me ver limitado ao meu minúsculo repertório ocidental que me impossibilita de vivenciá-las de maneira mais completa. É frustrante e maravilhoso ao mesmo tempo.

Já o polonês “Body”, Urso de Prata de melhor direção em Berlim, pode não ter uma profusão de simbolismos à moda oriental, mas traz aquele estilo cinematográfico bastante característico do cinema artístico europeu (mais marcadamente do leste), onde os longos tempos de silêncio, o despojamento quase total da narrativa e as interpretações intimistas covidam o espectador a um outro tipo de jornada: a viagem pelo que há de mais intimo e profundo na alma humana.

O protagonista aqui é Janusz (Janusz Gajos), um policial do setor de homicídos cujo trabalho é lidar diariamente com os mais diferentes tipos de cadáveres, nas mais diversas situações. Desde que sua esposa morreu, há seis anos, sua relação com a filha Anna (a ótima estreante Justyna Suwala) deteriorou-se completamente, a ponto da garota estar sempre à beira do suicídio. Anna (Maja Ostaszewska), a terapeuta de Olga, acredita poder resolver o problema através do Espiritismo, travando contato com a esposa falecida, método que o cético Janusz não consegue levar a sério.

A questão do corpo, ou principalmente da sua negação, é crucial no relacionamento entre o trio central de personagens. Janusz, por motivos profissionais, desenvolveu uma carapaça antiemocional em relação aos corpos que maneja diariamente em suas questões policiais. Olga, como consequência do trauma da morte da mãe, desenvolveu anorexia, e mantém uma relação negativa de constante conflito com o próprio corpo.  Enquanto isso, Anna dá prioridade total ao espírito. Ela até cita o exemplo do Brasil e seu 20 milhões de adeptos ao Espiritismo. “E os brasileiros não são indiferentes às dores e sofrimentos das pessoas, como nós, poloneses, somos”, afirma Anna em determinada cena.

Dirigido por Malgorzata Szumowska, “Body” honra a tradição de qualidade que o cinema polonês ostentava nos anos 70 e 80, com seus temas densos, interpretações marcantes e estilo circunspecto.  Além de Berlim, o filme também levou quatro prêmios no Polish Film Festival, incluindo Melhor Ator e Melhor Filme do Ano. A cena final é antológica.

Tanto “Para o Outro Lado” como “Body”, voltando mais especificamente para o início deste texto, se constituem em verdadeiras aulas para o cinema brasileiro engajado no tema da espiritualidade por um motivo muito simples: ambos os filmes são, primordialmente, pensados e desenvolvidos como cinema. É claro e evidente que eles trazem mensagens e conteúdos espíritas e espiritualistas, mas em nenhum momento eles deixam em segundo plano a questão cinematográfica. Pelo contrário. Roteiro, direção, estilo, estética, cuidados técnicos, interpretações, tudo nestes dois filmes transpira cinema da melhor qualidade. E assim, evidentemente, seus conteúdos são impactados pelo público com muito mais vigor e empatia. E o mais importante: eles não se preocupam – como faz a imensa maioria das produções brasileiras do gênero – em catequizar ninguém. Não são paternalistas nem didáticos. As personagens não recitam suas falas solenemente, como se fossem imperadores romanos dos antigos épicos americanos dos anos 50. Ninguém sai pra cá e pra lá usando roupas que emanam um branco luminoso estilo comercial de sabão em pó só pra dizer que são puros. Não são filmes “de nicho”, que serão vistos apenas por iniciados. São filmes grandes e universais. São, por assim dizer, arte e não catecismo. São filmes cinematográficos, no mais amplo sentido do termo. Por isso funcionam bem para plateias adeptas às questões da espiritualidade ou não.

Que ambos sejam vistos, analisados, aprendidos e apreendidos pelos produtores brasileiros que fazem filmes para os 20 milhões de espíritas a que Anna se refere em “Body”. Afinal, se Allan Kardec prega que estamos neste mundo para evoluir, o cinema espiritualista brasileiro também está precisando muito desta evolução.