“PEDÁGIO”: RETRATO DO BRASIL QUE O BRASIL NÃO QUER VER.

Por Celso Sabadin.

São tantas as qualidades de “Pedágio”, que fica até difícil não ser repetitivo, diante dos mais diversos elogios que já foram direcionados ao filme. Não por acaso, trata-se do vencedor dos prêmios de melhor atriz (Maeve Jinkings), ator (Kauan Alvarenga), atriz coadjuvante (Aline Maria Marta) e direção de arte (Vicente Saldanha) no recente Festival do Rio.

Entre seus méritos, acredito ser a direção de elenco o mais visível. Corrigindo um dos principais problemas de seu primeiro longa (“Carvão”), a diretora Carolina Markowicz desta vez acerta em cheio neste quesito, extraindo de todo o seu elenco intepretações das mais naturalistas e convincentes. Maeve Jinkings simplesmente arrasa, o que é uma constante em sua carreira, exceção feita ao sotaque interiorano forçado do já citado “Carvão”. Mas fica nítido o trabalho de direção quando se percebe que não é só ela, mas todo o elenco de “Pedágio” entrega um trabalho maravilhoso.

Outro ponto a se destacar é o tratamento dado a um tema urgente e importante, mas que tinha grande potencial de cair na caricatura: a chamada “cura gay”, patética bandeira levantada pela estupidez das forças conservadoras deste país.

Era bastante arriscada a proposta de Markowicz (que também roteirizou o longa) de reproduzir na tela o que poderia ser um “curso” que se propõe a reverter direcionamentos sexuais. O tema em si caminha na fina e perigosa linha que divide a tragédia da comédia, e afundar neste terreno pantanoso era uma possibilidade palpável. Felizmente, isso não aconteceu: “Pedágio” encontrou o tom ideal que escancara a hipocrisia sem descambar para o grotesco, ao mesmo tempo em que mantém um refinado sarcasmo que tangencia o humor, mas sem eliminar a seriedade da questão.

A hipocrisia, aliás, é outro tema forte que costura o roteiro. Os personagens de “Pedágio” primam pela relativização da realidade, adaptando-a às suas comodidades, e distorcendo valores de acordo com as necessidades pessoais. É uma sociedade na qual ser homossexual é inadmissível, um pecado a ser combatido a qualquer custo, incluindo assalto a mão armada, se preciso for. Afinal, como é dito por uma das personagens, casamento é coisa séria, que não pode ser prejudicado pela verdade. É ou não é o retrato do Brasil?

Neste processo de dualidade, é impossível também deixar de pensar na atuação da distribuidora da obra, a Paris Filmes. A empresa coloca no mercado tanto um longa elogiado e promovido pela ex-ministra homofóbica Damares e pela fábrica audiovisual de ódio e fake news Brasil Paralelo (“Som da Liberdade”), como este manifesto humanista chamado “Pedágio”. É ou não é o retrato do Brasil – parte 2?

O único ponto a se lamentar em “Pedágio” nada tem a ver com o filme, propriamente dito. Infelizmente, ele dificilmente será visto por quem precisaria vê-lo, ou seja, por quem ainda não tem a noção das liberdades individuais. Tal plateia só vai ao cinema se os ingressos forem distribuídos pelos pastores de sua congregação (e olhe lá), ou se forem exibidos nas TVs gerenciadas por religiosos fundamentalistas.

Ainda infelizmente, humanistas continuamos a nos comunicar apenas para nossas próprias bolhas. Que ainda são bem pequenas. É necessário furá-las. Será que “Pedágio” consegue?