POLÔNIA E ARGENTINA MOSTRAM DUAS FORMAS DE FAZER DOCUMENTÁRIOS NA PANDEMIA.

Por Celso Sabadin.

A pandemia nos impôs a todos – ou pelo menos a quase todos – um exercício de reinvenção. A impossibilidade momentânea de seguir a vida como ela sempre foi nos obrigou a buscar maneiras paralelas de prosseguir diante de uma nova realidade.

Não seria diferente no cinema. Esta edição 2022 do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários – exibe pelo menos duas experiências que provam que a vontade e a necessidade de filmar é maior que as restrições sociais, psicológicas e sanitárias da pandemia: os longas “O Filme da Sacada” e “Retratos do Futuro”.

Produzido na Polônia, “O Filme da Sacada” dribla o distanciamento social e a necessidade da máscara através de um dispositivo que o próprio título do documentário já expõe. O premiado cineasta Pawel Lozinsk simplesmente realiza todo o seu longa sem sair da sacada de seu apartamento, situado no primeiro andar de uma rua residencial da cidade da Varsóvia. É dali que ele aponta sua câmera para a calçada e convida os transeuntes a conversarem com ele.

Pawel não propõe um tema específico. Apenas bate papo com quem se dispuser a estar no filme. Em maior ou menor grau, os passantes abrem – ou não – seus corações, falam da vida, de saudades, de decepções e esperanças. Eles podem ou não retornar à mesma rua – e ao filme – em outros momentos. Podem filosofar sobre a existência ou simplesmente tomar um sorvete. Vale até não responder. E enquanto isso o tempo passa pela janela e pelas lentes do diretor, contando com o milagre da montagem que sintetizará as estações do ano nos 100 minutos que o filme dura.

A ideia é curiosa, mas digamos que patina um pouco e “não decola”. Talvez porque não saia da nossa cabeça a riqueza que um Eduardo Coutinho seria capaz de extrair destes enigmáticos  depoentes que passam pelo andar de baixo do apartamento de Pawel.

Retratos do Futuro

Já “Retratos do Futuro”, da argentina Virna Molina, se mostra bem mais atrativo e pungente. O lockdown e o isolamento social  atingiram a cineasta no momento em que ela realizava um documentário sobre protestos de trabalhadores do metrô de Buenos Aires, e tudo teve de ser interrompido. O exílio forçado dentro da própria casa, contudo, agiu como um novo catalizador de criatividade e inquietações, fazendo com que Molina se voltasse não mais para fora, mas para dentro: para dentro de suas memórias, seus arquivos, sua infância, sua vida, seus filmes… seus próprios subterrâneos.

O resultado é uma cinecolagem experimental, narrada em primeira pessoa, na qual Molina compõe um painel de si própria e suas relações com o mundo. Na fragmentação interna da pandemia, cabe tudo: família, história, governos e desgovernos, viagens reais e imaginárias, muita política, imagens aparentemente desconexas que repentinamente se conectam, vozes, músicas, lembranças.

Classificando-se como uma “niña setentista”, ou seja, da geração que praticamente nasceu dentro da ditadura militar argentina, Molina narra também parte de sua trajetória de cineasta militante pelos direitos humanos, atividade que a permitiu colecionar e organizar uma imensurável quantidade de imagens e lembranças que ajudam agora a compor não apenas a sua própria história, como também a de seu país. Militante que é militante não se deixa estacionar por uma pandemia.

Com cenas impactantes e questionamento inquietantes, a viagem da cineasta acaba sendo também a de todos nós.

A programação completa do festival está em www.etudoverdade.com.br