PRIORIZANDO ESTÉTICA DE TV, “TIM MAIA” PERDE GRANDE CHANCE DE FAZER CINEMA.

Assim como já aconteceu com “Serra Pelada”, “Gonzaga” e “O Tempo e o Vento” (só para citar três exemplos mais recentes), “Tim Maia” chega aos cinemas padecendo de uma forte crise de identidade: um produto audiovisual que não sabe se quer ser um grande filme para cinema, ou se quer ser uma minissérie de TV adaptada para a tela grande.

Trata-se de uma deformação de projeto, que já vem da base, e é muito comum nas produções da Globo Filmes: concebe-se, estruturalmente, a produção para que ela forneça quase que simultaneamente dois produtos diferentes: um longa e uma minissérie. Mas não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo (não com qualidade), correndo-se o forte risco de não ser nem uma, nem outra.

Principalmente quando se parte do pressuposto (que parece ser o caso aqui) que o público de televisão é mais disperso e menos perceptivo que o de cinema. Quando se pensa assim (pensamento, aliás, que eu não compartilho), a tendência do filme é eliminar sutilezas e multiplicar redundâncias. O que é péssimo para o Cinema.

Numa das primeiras cenas de “Tim Maia” já é possível perceber que o filme será este híbrido cinema/TV: uma voz em off (sim, uma voz em off, a praga do cinema brasileiro, de novo presente) explica didaticamente para o espectador que determinada ação vai acontecer no bar tal, esquina das ruas tal e tal. E para a nossa “surpresa”, a câmera focaliza não apenas o luminoso com o nome do bar, como também as placas com os nomes das ruas. Das duas. Com todo o respeito aos portadores de deficiências visuais, não é de hoje que eu falo que o cinema brasileiro vem sofrendo de uma espécie de síndrome de filme com audiodescrição.

Haverá mais, muito mais. Quando o personagem se vê obrigado a vender seu querido Camaro, vê-se uma mão colocando no veículo uma placa de vende-se, onde se lê não apenas “Vende-se”, mas sim “Vende-se Camaro”. Só faltou a voz em off voltar e perguntar para a plateia: “Vocês entenderam que ele está vendendo o Camaro? Que não é outro carro que não seja o Camaro?”.

Há uma outra cena, muito bem realizada, por sinal, onde Tim Maia e sua banda estão gravando. A câmera passeia pelo estúdio e revela, através do vidro, que a mulher de Tim, que o havia abandonado, está de volta, grávida. Ela está parada, em silêncio, do lado oposto do vidro do estúdio. Tim a vê, abandona a gravação, os músicos continuam tocando, a música toma conta da cena, e ele vai ao encontro dela. Os atores estão ótimos, e eles se reencontram, em silêncio, sem nenhuma palavra, sob uma forte emoção. Fim da cena. Linda, perfeita. Porém… imediatamente há um corte para o seguinte diálogo entre Tim e Fábio Fabiano:

– Grávida?
– Grávida!

Provavelmente alguém da direção, do roteiro ou da produção imaginou que o público pudesse não perceber, na belíssima cena anterior, que a personagem estivesse grávida. A plateia poderia pensar que ela tivesse engordado muito quando se ausentou de Tim, que aquilo fosse uma barriga d´água, que ela tivesse pego algum tipo de verme, ou que ela estivesse apenas zombando, com um travesseiro sob o vestido, da gordura de Tim Maia. Na dúvida, vamos explicar. Vamos verbalizar, falar, e se for preciso desenhar para o público entender que ela estava realmente grávida.

Este vício de subestimar a capacidade cognitiva das plateias está subtraindo do cinema brasileiro elementos que considero de fundamental importância para a telona, como grandes planos abertos, silêncios reflexivos, doses de introspecção, enquadramentos generosamente horizontais, exploração da profundidade de campo e coisas assim. Em lugar disso entra o onipotente e onisciente deus do off, aquela voz que vem do nada para quebrar qualquer tentativa de fluência narrativa, interromper a viagem particular de cada espectador, tirá-lo do universo da ficção e atirá-lo cruelmente na realidade que ele não está vendo a vida, mas sim um filme. E um filme que poderia ser muito melhor.

No caso de “Tim Maia”, ainda por cima acontece o inconcebível: não são poucas as cenas em que o deus off, além de explicar didaticamente o que está acontecendo na tela (caso você esteja, sei lá, vendo o Facebook durante o filme), além de chamar o espectador de pouco perceptivo (já que ele assume que você não está entendendo a trama), e além de ser utilizado como muleta verbal de cenas que deveriam ter sido resolvidas visualmente, ele – pasmem senhores – anuncia o que vai acontecer na cena seguinte. Talvez este deus off seja superprotetor e, temendo que o público se surpreenda demais, que alguém enfarte com alguma surpresa inesperada do roteiro, ele age como um air bag de emoções, narrando e preparando o público para o que será visto.

Tudo isso faz este crítico, tão apaixonado pelo cinema brasileiro, sentar na sarjeta e chorar copiosamente pelo sentimento de desperdício experimentado até o tutano. Sim, desperdício, pois “Tim Maia” conseguiu o que era mais difícil e falhou no que era mais fácil. Conseguiu encontrar, elencar e preparar dois atores que estão fantásticos em suas caracterizações do protagonista: Róbson Nunes como o Tim adolescente e Babu Santana como o Tim adulto. A voz de Robson é bem melhor que a de Babu (muito mais próxima do personagem real), enquanto Babu arrasa na interpretação corporal, mas ambos estão excelentes.
A produção é caprichada, o som enche a sala e dá vontade de dançar, a direção de arte é das mais verossímeis, o elenco está afiado, e ainda há o charme de filmagens em Nova York e Londres.

Dá vontade de sentar na ilha de edição, eliminar todos os offs e rever “Tim Maia” como um filme para cinema, e não com um produto audiovisual pensado para ser posteriormente picotado para a TV.

Talvez fosse melhor vê-lo com um baurette.