Quase Dois Irmãos

Os críticos da chamada “Cosmética da Fome” (até o final do texto eu explico) vão tremer em seus túmul… ou melhor, em suas redações. Depois de um bom tempo de prateleira, estréia finalmente o excelente Quase Dois Irmãos, de Lúcia Murat.
O roteiro, assinado pela própria diretora em parceria com Paulo Lins (autor do livro que originou Cidade de Deus), narra a trajetória de dois homens ao mesmo tempo muito iguais e completamente diferentes entre si: Miguel (Caco Ciocler e Werner Schunemann) e Jorge (Flávio Bauraqui Antonio Pompeo), os quase irmãos do título. Convivendo desde crianças, os amigos tomaram rumos diferentes na vida: enquanto Miguel se tornou um intelectual de classe média e, posteriormente, deputado federal, Jorge liderou o Comando Vermelho, organização que combatia a ditadura militar brasileira dos anos 60, 70 e 80. Miguel é advogado. Jorge é filho de sambista. Miguel é branco. Jorge é negro. Quase dois irmãos? Sim, mas separados pela fossa abissal brasileira que existe entre ricos e pobres. E que transforma nossas diferenças sociais numa surda e diária guerra civil.
As vidas dos dois personagens se cruzam, se entrelaçam, se amam e se odeiam em diferentes momentos de nossa história. Sem ordem cronológica, nem maniqueísmos fáceis. O que transforma Quase Dois Irmãos não só num belo panorama histórico, social e cultural do Brasil dos últimos 50 anos, como também num instigante exercício cinematográfico. A ingenuidade do antigo samba de morro, o golpe militar, a resistência civil, a escalada brutal da violência, tudo está no filme. Em linguagem ágil, reconstituição de época admirável, direção de arte soturna e magníficas interpretações.
É gratificante ver o amadurecimento da cineasta Lúcia Murat – que vivenciou na própria pele a experiência de ser presa política torturada no presídio de Ilha Grande – que depois de Doces Poderes e Brava Gente Brasileira, realiza agora esta obra forte, vigorosa, e que deveria a partir de agora constar no currículo de toda e qualquer escola que se disponha a ensinar um pouco de sociologia e história do Brasil aos seus alunos.
Ah, “Cosmética da Fome” é uma teoria meio tola segundo a qual alguns cineastas brasileiros estariam glamurizando a nossa pobreza para construir em cima dela belos efeitos estéticos cinematográficos para o mercado. Bobagem.