“QUINCAS BERRO D´ÁGUA” TRAZ HUMOR E CRÌTICA SOCIAL NA MEDIDA CERTA.

Se é verdade que Jorge Amado não tem merecido dos nossos cineastas adaptações cinematográficas à altura da qualidade e da popularidade de sua obra, a comédia “Quincas Berro D´Água” chega para tentar reparar pelo menos um pouco desta injustiça. Baseado no livro “A Morte e a Morte de Quincas Berro D´Água”, lançado em 1958, o filme consegue levar para a tela boa parte do humor, da picardia, da malandragem e da crítica social que sempre permearam a obra do famoso escritor baiano.

O Quincas do título (Paulo José, fantástico) é um boêmio convicto, apaixonado pela bebida, pelos fieis amigos cachaceiros e pelas alegres prostitutas da noite soteropolitana. Um homem feliz demais para aceitar que a sua morte venha a ocorrer justamente no dia do seu aniversário. E a poucas horas do que seria mais uma grande esbórnia comemorativa. Da mesma forma, seu alegre bando de amigos também se recusa a crer que Quincas tenha morrido antes da sua própria festa. Talvez aquele cadáver não passasse de mais uma brincadeira do sempre brincalhão Quincas, quem sabe? Na dúvida, vamos todos à farra! Mesmo morto, nosso herói não vai perder a derradeira e definitiva “saideira”.

Mas as coisas não serão fáceis. Do outro lado da cidade, do outro lado da sociedade, a família do protagonista reclama para si a posse e a propriedade do defunto. Sim, porque antes de se dedicar de corpo, alma e fígado á boemia, Quincas era um homem respeitável, de família tradicional, que um dia trocou o insuportável torpor das falsas aparências pela ilimitada alegria dos prazeres da vida.

Durante toda uma noite, o cadáver será disputado por dois grupos antagônicos: a sociedade aburguesada apavorada pelo escândalo das aparências, e a comunidade empobrecida que precisa viver cada noite como se fosse a única. Porque talvez realmente seja. Um tema nada estranho para um autor que passou a vida numa capital dividida entre Cidade Alta e Cidade Baixa. Um tema nada estranho para quem mora em um dos dois “Brasis”.

“Cidade Baixa”, por sinal, é o trabalho anterior do cineasta baiano Sérgio Machado, diretor de “Quincas Berro D´Água”. É dele também o ótimo documentário “Onde a Terra Acaba”, o que sinaliza uma carreira de grande talento e ecletismo. Afinal, poucos brasileiros podem se orgulhar de terem dirigido três longas de grande qualidade, antes dos 42 anos de idade.

“Quincas Berro D´Água” salta aos olhos pelo seu excelente elenco (seria injusto ressaltar um ou outro), fotografia e trilha sonora acima da média, ritmo e – pasmem – efeitos especiais. Se alguém ainda acha que o cinema brasileiro não sabe fazer efeitos especiais, vale uma olhada, principalmente nas cenas de tempestades marítimas.

Além da firme direção de Machado, “Quincas Berro D´Água” catalisa também a produção de dois cineastas brasileiros que, numa primeira orelhada, soariam dissonantes: Guel Arraes e Walter Salles Jr. O primeiro, sempre sintonizado com o cinema de resultados comerciais, é um dos principais nomes dos núcleos produtivos da Globo, seja a TV, seja seu braço cinematográfico. E o segundo, totalmente autoral, é um nome muito mais ligado à qualidade artística da obra cinematográfica. Pois bem: esta mistura de água e óleo foi das mais saudáveis para o filme, que conseguiu aliar conteúdo, diversão, crítica social, humor e qualidade técnica.

Mais uma prova que entretenimento e arte podem, sim, caminhar juntas na tela do cinema.