REFILMADO, “VIOLÊNCIA GRATUITA” CONTINUA ASSUSTADOR.

Refilmagens são comuns na indústria do cinema. Mas raramente um cineasta refilma sua própria obra. Hitchcock o fez, com “O Homem que Sabia Demais”, e agora Michael Haneke repete a dose.

Nascido na Alemanha, Michael Haneke cresceu e estudou na Áustria. Dedicou seus primeiros 20 anos de carreira quase todos à televisão, e chamou a atenção da comunidade cinematográfica mundial com o desconcertante “Violência Gratuita”, produção austríaca que escreveu e dirigiu em 1997.

O filme ganhou vários prêmios internacionais, e concorreu à Palma de Ouro em Cannes. Não ganhou, mas revelou o nome deste que seria um dos cineastas mais inovadores dos últimos 10 anos.

Depois vieram “Código Desconhecido”, “A Professora de Piano”, “Le Temps du Loup” (inédito em nossos cinemas) e “Cachê”, todos com ótima repercussão nos circuitos artísticos, alternativos e de festivais. Todos premiados.

No ano passado, Haneke se defronta finalmente com um dos mais “temidos” desafios de qualquer cineasta europeu: uma co-produção norte-americana, filmada nos Estados Unidos, e falada em inglês. Não foram poucos os diretores do Velho Mundo que se perderam pelos caminhos da globalização cinematográfica, e colocaram suas carreiras em risco em função da força da grana que ergue e destrói filmes belos.

Mas Haneke não capitulou. Usou, sim, o capital levantado por EUA, Inglaterra e França (algo em torno de US$ 15 milhões), e partiu de mala, cuia e tripé para Long Island, no estado de Nova York, para fazer seu primeiro filme falado no idioma de Shakespeare: “Violência Gratuita”. Sim, a refilmagem exata e precisa do mesmo roteiro que o havia colocado no mapa do cinema, dez anos atrás. E põe “refilmagem” nisso. A nova versão é praticamente idêntica à original. Até o cenário da casa onde os fatos acontecem foi construído a partir das plantas do filme anterior.

Para quem não viu – ou não se lembra – o roteiro fala de dois jovens psicopatas (Michael Pitt e Brad Corbett) que barbarizam uma família de classe alta em férias numa luxuosa residência à beira de um lago. E “barbarizam” parece ser mesmo a palavra mais correta. Num primeiro momento, os rapazes se apresentam apenas como jovens educados que precisam de alguns ovos emprestados. Porém, logo a família – formada pela mãe Ann (Naomi Watts, de “Senhores do Crime”), o pai George (Tim Roth) e pelo filho também chamado de George (Devon Gearhart) – percebe que alguma coisa está muito errada.

Não demora muito para os invasores externarem toda a fúria e a violência que justificará o bom título em português. Tudo, é claro, dentro do marcante estilo de Haneke, que utiliza longos e exasperadores planos silenciosos para prolongar a sensação de pânico, que arrebata o espectador de forma tensa e claustrofóbica.

Marginais hostilizando e ameaçando famílias aprisionadas no próprio recinto de seus lares não é uma novidade no cinema. O clássico “Horas de Desespero”, que William Wyler dirigiu em 1955, bem como suas refilmagens, são provas irrefutáveis disso. Porém, “Violência Gratuita” vai muito além – por assim dizer – justamente por ser mais violento e muito mais gratuito. Sintonizado com o atual momento da criminalidade humana mundial, os psicopatas do filme não têm motivos aparentes para tamanha brutalidade. Pelo contrário, em determinada cena, eles zombam dos motivos comumente apresentados pela sociedade para tentar justificar a violência da própria sociedade. Fazem troça de frases como ”eu sou assim porque sou favelado” ou “sou assim porque meu pai me batia” e assim por diante. E mais: sistematicamente eles tentam vender a idéia de que só foram violentos porque foram obrigados a isso pela “falta de maneiras” das próprias vítimas. Algo do tipo “Você pisou no meu pé; fui obrigado a te matar”. É, aliás, o que se vê diariamente na mídia, cada vez mais.

Daí a boa solução desenvolvida pelo título nacional. O original – “Funny Games” – teria uma tradução desajeitada com Jogo Engraçados, ou Jogos Estranhos. Lembrando que esta refilmagem tem como título original “Funny Games U.S.”

Pode-se questionar por que assistir a esta versão norte-americana, já que ela é a refilmagem praticamente cena a cena do excelente e perturbador original austríaco. Ambos têm até a mesma duração, de 107 minutos. Talvez seja exatamente isto. Com luva de pelica, Haneke está provando que um cineasta não precisa subverter a sua visão artística para entrar no mercado comercial americano, como tantos fizeram. Não precisa violentar a sua própria obra. Talvez a idéia do filme seja precisamente a de mostrar como o cinema pode falar exatamente a mesma língua, na Áustria ou nos EUA, como aliás acontecia na antiga era dos filmes mudos. Talvez.

De qualquer maneira, falando em violentar, que motivos teriam levado o cineasta a escolher uma dupla de atores europeus (ingleses) para viver os espancados, e uma dupla americana para viver os espancadores, justamente neste seu primeiro filme feito nos EUA? Freud explicaria…?