“RIOTSVILLE, EUA” E A PARANÓIA BRANCA DIANTE DO NEGRO NORTE-AMERICANO.  

Por Celso Sabadin.

Anos 1960. Uma imagem com jeitão amador, câmera na mão, sem muita habilidade, mostra o que parece ser um quarteirão de uma pequena cidadezinha qualquer do interior dos EUA. Um grupo de manifestantes protesta pela rua. Eles não estão calmos. Uma tropa de choque aparece para reprimi-los. Há conflitos.

Surge até um helicóptero lançando alguma espécie de fumaça sobre eles. De repente, a câmera revela uma pequena arquibancada de madeira de onde senhores engravatados ou portando uniformes militares aplaudem a tudo. Percebe-se então que a suposta manifestação era somente uma encenação realizada em um quarteirão cenográfico, onde todos os seus protagonistas – policiais e civis – são interpretados não por atores, mas por componentes do exército dos EUA.

A tal “cidadezinha qualquer do interior” é então uma construção – literal e simbólica – batizada de Riotsville, ou a Vila do Tumulto, a Vila do Distúrbio. A finalidade? Armar um espetáculo midiático para mostrar aos políticos e militares estadunidenses que as forças responsáveis para manter o que eles amam chamar de “lei e ordem” estão altamente treinadas e preparadas para reprimir vigorosamente as manifestações – dos negros, claro – que naquele momento proliferam pelo país. Mas que para manter tudo isso o exército precisará da única coisa que eles apreciam mais do que “lei e ordem”: verbas. Infinitas verbas.

Toda esta situação – que beira o tragicômico e o patético – está retratada no longa “Riotsville, U.S.A.” um dos destaques desta edição 2022 do festival É Tudo Verdade, com roteiro do escritor, ativista e jornalista Tobi Haslett, e direção da documentarista norte-americana Sierra Pettengill.

A histórica e política necessidade do governo estadunidense de estar sempre à procura de inimigos – reais e imaginários – foi potencializada nos anos 1960, não apenas em função do “perigo vermelho” da União Soviética, como também pela multiplicação de manifestações de negros estadunidenses cada vez mais conscientes e revoltados contra o verdadeiro apartheid interno estabelecido no país.

Reprimi-los com violentamente pelas forças policiais era uma necessidade premente para a elite dominante branca, além de um ótimo pretexto para a reivindicação de mais e maiores verbas para os instrumentos da repressão.

Neste sentido, as imagens do longa são impressionantes, não somente pelo lado mais óbvio dos resultados físicos desta violência, como também pelo registro da insanidade coletiva instalada na nação norte-americana. Mostra-se, por exemplo, um grupo de “recatadas” senhoras conservadoras, tipo “vovós fofinhas”– todas brancas, claro – animadas com suas aulas de tiro, e felizes ao serem informadas pelo instrutor que elas estão mirando exatamente nos mesmos padrões de alvos utilizados pela polícia e pelo FBI.

Uma delas afirma que não gosta da ideia de atirar em seres humanos, mas que “é preciso fazer o que deve ser feito”. Outra “tiazinha simpática” é flagrada dirigindo seu carro sem largar o revólver, com a janela aberta, atenta como se estivesse num destes Zoo Safari.

Em outro momento do filme – que é inteiramente fundamentado e formatado em imagens autênticas de arquivo – filas e filas de “cidadãos do bem” respondem em massa a uma convocação da polícia de Detroit, como voluntários, para ajudar na formação de uma milícia informal com o objetivo de reprimir as manifestações dos negros, anunciadas para breve. A informação da polícia dizendo que os voluntários devem comprar seus “equipamentos” com o próprio dinheiro, não é suficiente para dissuadi-los da ideia.

Um filme “educativo” produzido pelo governo norte-americano mostra uma manifestação de rua – encenada – de pessoas brancas exigindo um ônibus escolar para a cidade. O locutor informa que este tipo de ato, organizado e “pacífico”, é democrático e permitido. Corta para uma outra manifestação onde quase nada se vê, a não ser o tumulto. Não se enxergam os manifestantes, mas ouvem-se nitidamente as vozes bem marcadas, típicas do falar do negro estadunidense, com suas expressões típicas. O locutor diz que este tipo de manifestação é ilegal e será reprimido.

E, assim sucessivamente, o filme mostra que “Riotsville, USA” não é apenas a representação midiática de uma cidadezinha perdida no interior, mas sim um simbolismo do engajamento de todo uma população branca fortemente comprometida a impedir qualquer tipo de ascensão aos pretos, seja social, política, ou até mesmo humanitariamente.

Tudo isso sem falar da doentia necessidade de encenação, na cultura norte-americana. Por ali, parece que nada existe se não for falsamente roteirizado, encenado, interpretado, filmada e veiculado. Dentro de todos os padrões desejáveis e aceitáveis, claro.

A programação completa do Festival está em www.etudoverdade.com.br