SCORSESE DEVERIA TER FEITO UM ESTÁGIO NA DISNEY.

Fui numa cartomante em dezembro, ela me disse que logo no começo do ano eu ia ver um filme Iraniano que eu ia adorar e na sequência um do Scorsese que eu ia odiar. Enchi a cara dela de tapa e fui embora sem pagar. Vou ter que voltar lá pra pedir desculpas…

Achei decepcionante. Quer dizer, claro que tem um lado que é não menos que fantástico, que é todo o visual, aquele décor da era mecânica muito bem utilizado, saboroso, a produção toda impecável, os vertiginosos e bem usados movimentos de câmera, os FXs, o 3D, isso tudo é perfeito. Mas e o roteiro? Who wrote that shit? Exagerando (bastante, confesso) é como se tivéssemos voltado no tempo e estivéssemos agora assistindo àqueles filmes do Pathé, do trem chegando na estação, o povo se admirando com aquele visual mas… e o roteiro?

Tudo bem, é exagero, mas nem tanto, porque guardando as proporções das épocas, o impacto é o mesmo (o Scorsese assumidamente faz essa alusão no filme), e o Pathé ainda tinha a desculpa de que Méliès ainda não tinha inventado a linguagem do cinema, Griffith ainda não tinha inventado a sintaxe da arte, Hollywood ainda não tinha estipulado a importância do roteiro no cinema, então, tudo bem, o trem passando já tava bom. Mas hoje em dia não dá pra só passar o trem… Mesmo se for em 3D.

O filme não sabe nem ao certo de quem é a história, se do moleque ou do Méilès. E as duas histórias se juntam de um jeito que precisa ter muito boa vontade pra engolir. Quer dizer, o moleque tinha a máquina do pai, que pra funcionar precisava de uma chave e daí ele rouba um cara que era ninguém menos que exatamente o cara que tinha criado o autômato que tava lá, do ladinho dele! E isso só não é suficiente, porque pra chave cair mesmo na mão dele ainda precisava a menina, do nada, se encantar com ele e num dado momento mostrar a chave que trazia pendurada no pescoço que foi dada pela madrinha, sem motivo algum!! Então tá.

Aí o Méliès vê os desenhos do seu Rosebud que salvou de incêndio, vê que o moleque gênio o está consertando e ele resolve fazer o quê? Resgatar o objeto tão importante na sua vida? Agradecer ao menino? Ajudar o menino? Não!! Resolve torturá-lo e tenta fazer que ele vire seu escravo e passa a tratá-lo também como se ele fosse um estranho repulsivo. Muito lógico… Ah, tá, é que ele não queria mais lidar com seu passado. E daí o psicopata resolveu descontar isso no pobre órfão… Então tá.

O filme ainda lança mão de um expediente inaceitável até pra primeira obra: um Deus Ex-Maquina, com tal do Tabard saindo out of the blue pra resolver a trama, trazendo de volta o suposto último filme do Méilès. E aos 43 do segundo tempo lá é hora de apresentar personagem novo?! Aliás, se a gente pensar bem, esse personagem do Tabard – a despeito do que foi na vida real, que aqui não interessa – na trama ele foi “começado” pelo velho da biblioteca, que não tem função na trama a não ser essa, ser “continuado” pelo Tabard mais tarde. É que não podia ser o Tabard desde o começo, porque senão ficaria ilógico demais, ai dividiu-se a função de um personagem em dois, mas é o mesmo driver. Feio. Amador.

Mais uma falha que parece bem grave pro gênero, aliás duas: é uma aventura sem cenas de ação, ou com situações de tensão bem pouco críveis (e por consequência bem pouco tensas de fato), como por exemplo aquela cena “incrível” (lato sensu) de de repente um corredor da estação é tomada por uma imensa multidão, grande a ponto da massa humana não permitir que a menina se levante sem ajuda do garoto. Filha, dê dois passos pra lá que você sai da manada! No filme tem ali um ou outro corre-corre na estação, mas não suficientes pra compor uma aventura, ou pelo menos não seriam suficientes na mão de um diretor mais afeito ao gênero.

E a outra falha grave é que é um filme de aventura… sem vilão! Como pode?! Quer dizer, tem alguém lá fingindo que é o vilão, que é o guarda com necessidades e carências especiais que não assusta ninguém (o dobermann é mais vilão do que ele…) e ainda fazendo uso do velho clichê dos anos 60 de polícia francesa incompetente e fácil de enganar. (Billy Wilder já não tinha sido definitivo nesse assunto?)

Scorsese, que imitou Hitchcock com assombrosa perfeição em Key to Reserva (parece psicografado) aparentemente esqueceu de ler a entrevista do mestre inglês dada a Truffaut, onde ele fala da importância de se criar um vilão tão ou mais perfeito que o herói. Essa leitura fez falta pra ele…

Fora mais um monte de reações improváveis, de soluções fáceis e/ou óbvias, como a fuga do moleque da cadeia, diálogos tolos, personagens planos e mono-facetados como todas as mulheres do filme e sei lá mais o quê.

Ainda mais uma: tal qual o A.I., que acho um dos piores filmes do Spielberg, o filme não é bom nem pra criança nem pra adulto, porque tem uma trama fantasiosa e infantil (nos dois sentidos), mas de repente vem um papo furado lá com o amigo do guarda, se a mulher pulou a cerca ou não. Faltou um estágio na Disney antes de rodar o filme… Aliás, tudo o que envolve esse guarda é péssimo, como por exemplo o filme parar pra gente ver um esboço de romance dele com a florista, que nem se desenvolve e nem se resolve e nem ao menos tem função na trama.

Além do visual impecável, o que vale no filme é a reconstituição dos filmes do Méliès que isso é muito legal de ver. Qualquer um que teve curiosidade de saber como foi formada a sétima arte sabe que ela tem 4 pais, todos franceses: primeiro os irmãos Lumière criando a técnica; depois o Pathé criando o modelo de negócio que viabiliza a atividade; e por fim tivemos Méliès descobrindo a linguagem do cinema. Inclusive tempos atrás fiz um (ótimo) curso da história do cinema com Celso Sabadin (sim, eventualmente ele é capaz de fazer uma ou outra coisa que preste, mas é por pura sorte…) e lá ele falava ou “elegia” o momento de criação do primeiro real take cinematográfico que foi quando o Méliès colocou um aquário na frente da câmera pra fazer as tomadas “submarinas”. E de fato, ISTO é fazer cinema (em contraposição a apenas fazer o registro em filme de uma peça de teatro ou mesmo um trem passando por exemplo) Quer dizer, no momento em que alguém toma essa decisão de colocar a câmera num lugar onde, só por estar nessa posição, conte mais da história, este é de fato um ato de fazer cinema. Hoje parece óbvio, mas ele fez o primeiro. E rever este momento, como tantos outros da obra dele, inclusive as primeiras descobertas das possibilidades da montagem, foi fantástico. Mas o resto da história achei realmente fraquíssimo.

Ah sim: assisti ao filme atentamente por 2 horas, e não sei dizer o que foi que Hugo Cabret inventou afinal…