“SEM PIEDADE”, A RECONSTRUÇÃO QUE NÃO VEIO.

Por Celso Sabadin.

1948. Três anos após o término da Segunda Guerra. Solidária e clandestina, Angela (Carla Del Poggio) atravessa a Itália em um trem de carga. Em seu caminho surge o sargento norte-americano Jerry (John Kitzmiller), baleado, à beira da morte. Angela pede ajuda e lhe salva a vida, mas a polícia do período de ocupação não acredita em sua história. Cada qual com suas aflições, Angela e Jerry passam então a formar um casal de outsiders, de excluídos. Ela, fugindo de um passado doloroso que precisa superar, e ele, traído por um esquema de corrupção envolvendo italianos e soldados norte-americanos. O conceito de reconstrução assume os mais diversos contornos, nesta Itália destruída pela Guerra.

Dois anos antes de dirigir seu primeiro filme – “Mulheres e Luzes” – Federico Fellini co-assina esta que é nada menos que sua 14ª colaboração em roteiros e argumentos de longas que vem escrevendo desde 1942. Aqui, ele divide os créditos com Ettore Maria Margadonna, Tulio Pinelli e Alberto Lattuada, o diretor do filme.  “Sem Piedade” também é o primeiro trabalho creditado da atriz Giuletta Masina (no ótimo papel de Marcella, que lhe rendeu o prêmio de melhor coadjuvante pelo sindicato italiano dos jornalistas cinematográficos), esposa de Fellini desde 1942, e com quem permaneceria casada até o final da vida dele, em 1993.

Sem Piedade” é considerado por alguns pesquisadores e críticos como pertencente à fase do Neorrealismo, digamos, “tardio”, ou seja, aquele em que grande parte do público não está mais aberta para as sofridas histórias de reconstrução, e já prepara o terreno para o cinema cômico e escapista que dominará a preferência popular italiana nos próximos anos. Contudo, independente da aceitação das plateias da época, o filme continua mantendo sua dramaturgia forte e seu vigor narrativo, além de sua importância histórica.

Na nova realidade da ocupação norte-americana, os italianos bebem muita Coca-Cola (com a qual Marcella diz que não consegue se acostumar), ouvem programas cômicos em inglês pelo rádio (que tampouco compreendem), e dançam ao som do jazz.

Trata-se de uma falsa sensação de alegria e liberdade de fachada, que tenta jogar por baixo do tapete a sujeira das estruturas sociais que levam as mulheres italianas a se prostituir, os soldados americanos a se corromper, e os eternos empreendedores de plantão a enriquecer com o mercado paralelo ilegal que permanece no pós Guerra. Com o final do conflito mundial, apenas os inimigos são outros.

Uma rápida porém significativa tomada fotografada por Aldo Tonti – o mesmo de “Obsessão” – escancara cinematograficamente esta cortina de fumaça:  em primeiro plano, um alegre, iluminado e musical parque de diversões; atrás dele, os escombros escurecidos dos edifícios destruídos por bombardeios.

“Sem Piedade” abre também espaço para um personagem argentino corrupto com um discurso aterrador: “Os negros serão sempre negros. Conheço centenas, milhares deles, desde garoto.

Meu pai… Congo – Rio de Janeiro, Congo – Buenos Aires, Congo – La Plata…  transportava negros! Lembro-me muito bem. Pessoas más! Eram escravos e não queriam trabalhar. Tínhamos sempre que matá-los de pancada”.

Porém, o filme não tem a coragem de assumir – em seu roteiro – a mesma crítica que faz ao racismo, através do personagem sul americano: a loira Angela e o negro Jerry, por mais que fique nítido que se apaixonam durante a trama, jamais se tocam, se abraçam ou muito menos se beijam. E por algumas vezes seus diálogos fazem questão de destacar que são apenas “bons amigos”.

Provavelmente uma aproximação inter-racial naquele momento em que a conservadora Democracia Cristã vencia, com boa margem, as primeiras eleições do pós Guerra na Itália pudesse comprometer a carreira comercial do filme. Ou mesmo causar um escândalo de censura. Preferiu-se não arriscar.

Com trilha sonora de Nino Rota (que se permite um estranho “Aquarela do Brasil” arranjado com maracas caribenhas), “Sem Piedade” traz ainda um pungente letreiro de abertura: “Apenas quando cessa o som da batalha os homens descobrem o verdadeiro horror da guerra e veem-se derrotados. É um castigo que se renova a cada dia. Este filme pretende ser um testemunho da verdade. A história se passa na Itália, mas poderia ser em qualquer outro lugar onde a guerra tenha feito os homens esquecerem sua piedade”.