SENSÍVEL PRODUÇÃO BAIANA, “DEPOIS DA CHUVA” RESGATA A ÉPOCA DAS DIRETAS-JÁ.

Por Celso Sabadin.

Muito já se falou (e já se filmou) sobre a época da ditadura militar brasileira, um período que sem dúvida nenhuma merece (e carece) ainda das mais variadas reflexões. Porém, poucos tinham voltado suas lentes para outro momento igualmente icônico na recente vida política brasileira: a campanha pelas eleições “Diretas Já”.

O drama baiano “Depois da Chuva”, estreia no longa-metragem da jovem dupla de diretores de Cláudio Marques e Marília Hughes, chega para tentar cobrir, pelo menos parcialmente, esta importante lacuna.

Tudo se passa naquele memorável 1984. A campanha pelas diretas ganha as ruas e a mídia, alastra-se pela população, e entusiasma os alunos de um colégio classe média na cidade de Salvador. Eufóricos, os alunos se preparam para eleger, também de forma direta (na medida do possível), a diretoria do grêmio estudantil, prática proibida naquela instituição desde a implantação da ditadura. Porém, alheio à movimentação, o jovem Caio (Pedro Maia, ótimo) não compra o que, para ele, é uma falsa ideia de democracia. Ainda que calado e introspectivo, Caio prefere o Anarquismo, considera seus colegas politicamente manipulados, e extravasa suas ideias na rádio pirata “O Inimigo do Rei”. Enquanto seus colegas lutam para eleger o grêmio da escola, Caio prefere pular os muros desta mesma escola.

Nos palanques, os políticos da hora gritam por reformas. Mas a revolta de Caio é calada, silenciosa. Assim como o próprio estilo do filme, intimista e reflexivo. Não é o protagonista quem grita, mas a trilha sonora filme, com direito a Paulo Barnabé e Sex Pistols.

A escola admite e até admira que seus uniformizados alunos cantem “Para Não Dizer que Não Falei de Flores”, mas aprovar Nelson Gonçalves cantando em ritmo de heavy metal já seria demais. Neste processo de retratar a escola como microcosmo do Brasil, o filme cria um feliz paralelo ensino/sociedade onde só é permitida a “transgressão” oficial, exatamente como ocorria na época. Para quem está chegando agora ou não se lembra, a campanha pelas eleições diretas, num primeiro momento ignorada pela Rede Globo, ainda que posicionada contra os militares, estava longe de ser transgressora, e contava com o apoio de vários governos estaduais. Quando a emenda não foi aprovada, houve um desânimo geral da Nação, e era realmente impossível se entusiasmar com os dois candidatos indiretos que a ditadura nos concedeu: Paulo Maluf e Tancredo Neves, o roto e o rasgado. Quando Tancredo adoeceu, ainda antes de tomar posse, a Globo em particular e a mídia em geral se apressaram em reposicioná-lo como santo e herói, transformando-o, graças à suposta e intrínseca bondade original do povo brasileiro, num ícone de liberdade e democracia, coisa que Tancredo nunca foi.

Com muita competência, o filme segue nesta linha, dissecando, através do protagonista, uma desilusão que parece não ter fim no nosso país. Ganha-se a liberdade que nos concedem, a não a liberdade pela qual brigamos. Nem cogito em tentar discutir qual é a liberdade que merecemos.

Quem não conhece a dupla de diretores pode até ter se surpreendido com a maturidade da direção, a consistência do roteiro e a qualidade do filme como um todo, principalmente pelo fato deles serem estreantes no longa. Mas quem já viu os curtas anteriores de Cláudio Marques e Marília Hughes – os ótimos “Carreto” e “Nego Fugido”  – já sabia, ou pelo menos esperava, que “Depois da Chuva” poderia ser um grande filme. A promessa foi cumprida.

Rodado em 16mm, um formato praticamente em extinção, “Depois da Chuva” ganhou três prêmios no 46º Festival de Brasília: roteiro, trilha sonora e ator, para Pedro Maia que tornou-se o mais jovem vencedor deste Festival nesta categoria. O filme foi também escolhido  como melhor produção estrangeira no Harlem International Film Festival de Nova York.