“SINFONIA DE UM HOMEM COMUM”, OU O DIA EM QUE UM BRASILEIRO ENCAROU GEORGE W. BUSH.

Por Celso Sabadin.

Se existe algo, digamos, “errado” no excelente “Sinfonia de um Homem Comum” é o seu título. José Maurício Bustani, o personagem abordado pelo documentário, pode ser tudo, menos um homem comum.

Não se trata de um nome midiático, e certamente pouquíssimas pessoas se lembrarão das questões bélicas e diplomáticas em que ele foi envolvido, no início deste século, mas José Maurício Bustani é uma personalidade icônica cuja atuação na política internacional nos permite desenvolver profundas e variadas reflexões sobre as relações de poder que – até hoje, e cada vez mais – dominam as fronteiras do poder mundial.

Apenas contextualizando rapidamente – já que o filme faz isso com muita qualidade – o brasileiro Bustani foi o primeiro diretor da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), entidade internacional criada em 1997 para, conforme seu nome já diz, banir do planeta as armas de destruição em massa. Neste contexto, inevitavelmente houve um momento histórico em que ele entra em rota de colisão com ninguém menos que George W. Bush, o então presidente norte-americano que, na ânsia descontrolada de invadir o Iraque para roubar o petróleo daquele país, inventou a história que Saddam Hussein teria armas químicas e, consequentemente, o Iraque deveria ser “democratizado” pelos EUA.

Porém, como muitos já desconfiavam que Bush mentia, Bustani propôs que o Iraque entrasse para a OPAQ, o que autorizaria oficialmente uma séria e criteriosa investigação em território iraquiano empreendida pela própria organização, e não pelos EUA. Fatalmente, tal investigação concluiria aquilo que todos ficamos sabendo mais tarde: que o Iraque não tinha armas de destruição em massa. E isso Bush não poderia permitir, pois desautorizaria seu assalto ao país do oriente. É neste momento que os EUA entram em guerra não contra o Brasil, mas contra Bustani, lançando mão dos mais sórdidos estratagemas, como o filme minuciosamente mostra.

Com roteiro de David Meyer, Pedro Rossi, Jordana Berg e José Joffily, e direção de Joffily (o mesmo de “Quem Matou Pixote?”, “Olhos Azuis” e vários outros), “Sinfonia de um Homem Comum” é investigativo, didático, e conduzido com firmeza pela própria voz do diretor. Não hesita em mostrar que, como diz o texto do filme, “a tragédia das torres gêmeas parecia até uma encomenda” naquele momento em que Bush necessitava desesperadamente de “motivos” que justificassem altos investimentos na guerra contra o que chamou de “o eixo do mal”.  Desenvolve suas premissas com a autoridade de quem levou a pesquisa a sério, e expõe seus pontos de vista com clareza e determinação.

Em um ponto que tangencia com “O Presidente Improvável”, outro documentário estreado agora, “Sinfonia de um Homem Comum” exibe uma constrangedora entrevista com Fernando Henrique Cardoso, o então presidente que abandonou Bustani à sua própria sorte, durante este episódio tão diplomaticamente delicado. Cardoso afirma que não se lembra do que aconteceu na época, e de qual foi a posição do Brasil. E ainda diz, em resignado tom derrotista, que o jogo de poder “é assim mesmo”. Em contraposição, o documentário mostra que Lula, ao tomar conhecimento da coragem de Bustani de enfrentar Bush, reservou ao diplomata uma função de destaque no novo governo: o de embaixador do Brasil no Reino Unido. E que ainda provocou Tony Blair – então primeiro ministro britânico – a respeito do assunto.

A cereja no bolo de “Sinfonia de um Homem Comum” é atualizar o tema para os dias de hoje – trocando o Iraque pela Síria – e comprovar que, seja com Bush, Trump, Obama ou Biden, nada parece mudar nesta ordem mundial que de nova não tem nada. Resta somente valorizar alguns quixotes eventuais como Bustani para ver se algum dia os moinhos de veto caem.

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